Como prometido na postagem passada, dedicarei alguns parágrafos a comentar o ensaio "Mulheres e ficção", escrito por Virginia Woolf e publicado em uma coletânea da Cosac Naify chamada O valor do riso. A escritora britânica publicou esse texto originalmente na revista Forum, de Nova York, em 1929, já lá se vão quase noventa anos de mudanças vertiginosas no comportamento, nos valores sociais e nas discussões sobre gênero. No ensaio, Woolf problematiza os fatores que condicionam o ato da escrita por mulheres e relaciona - para minha surpresa, mas talvez não sem fundamento - certos gêneros literários ao gênero de quem escreve.
As mulheres passaram a participar ininterruptamente da produção literária a partir do final do século XVIII. Antes disso, há vozes - ou penas - femininas ilhadas, como Safo de Lesbos, na Antiguidade, e a japonesa Shikibu Murasaki, por volta do ano 1000. Grandes manchas de silêncio feminino caracterizam a história da literatura no passado. Virginia Woolf deve ter razão, quando associa o aparecimento de mulheres romancistas na transição entre os séculos XVIII e XIX na Inglaterra, como Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot, a mudanças "nas leis, nos costumes e nas práticas sociais".
Jane Austen e as irmãs Brontë.
É certo que tempo livre e acesso à instrução são condições determinantes para que alguém escreva ficção. Se atualmente as obrigações familiares que são descarregadas nos ombros das mulheres ainda limitam sua participação em posições de comando e de destaque, é claro que foi muito pior um par de séculos atrás. Das quatro grandes romancistas britânicas mencionadas por Woolf, duas não casaram e nenhuma teve filho, o que a ensaísta reputa como sintomático. À luz disso tudo, conhecer como poderiam viver as mulheres comuns é essencial, segundo a escritora, para entender como as mulheres ingressaram nas letras como agentes criadoras:
"(...) apenas quando pudermos avaliar o modo de vida e a experiência de vida tornados possíveis para a mulher comum é que poderemos explicar o sucesso ou o fracasso da mulher incomum como escritora."
Não foi aleatório, para Virginia Woolf, que a entrada tenha ocorrido por meio do gênero romance e de um tipo de romance com temática bem específica: o de análise do caráter. A autora menciona até uma "pressão sobre as mulheres para escrever romances". O argumento principal é de que "a experiência exerce grande influência sobre a ficção" e, estando aquelas mulheres "forçosamente privadas de toda experiência que não fosse a passível de ser encontrada numa sala de visitas de classe média", os romances que escreveram não poderiam conter, de forma verossímil e consistente, o que a experiência de soldado de um Tolstoi permitiu-lhe escrever sobre a guerra, em Guerra e paz, ou o que a vivência de Joseph Conrad, como homem do mar, possibilitou que ele incluísse desse tipo de vida em seus livros.
"A ficção era, e ainda é, a coisa mais fácil de uma mulher escrever. E a razão para isso não é difícil de encontrar. O romance é a forma de arte menos concentrada. É mais fácil interromper ou retomar um romance do que um poema ou uma peça. George Eliot parava de trabalhar para ir cuidar do pai. Charlotte Brontë trocava a pena pela faca de descascar batatas. E a mulher, vivendo na sala, em comum com as pessoas que a cercavam, era treinada para usar sua mente na observação e análise do caráter. Era treinada para ser romancista, não para ser poeta."
Minha aceitação dos argumentos de Virginia Woolf chega a um impasse quando ela trata das relações entre gênero e forma literária, o que não cabe discutir nas limitadas proporções deste texto. Não fiquei convencido dessa diferenciação entre ser romancista e poeta, tampouco dessa condição do romance como "arte menos concentrada". Parece-me fazer sentido a relação estabelecida entre os limites da experiência pessoal e social e a propriedade no tratamento de determinados temas, todavia o condicionamento quanto à forma não ficou bem posto.
Além das marcas temáticas, Virginia Woolf aponta que a ficção engendrada pelas mulheres era, ao mesmo tempo, caracterizada por sub-reptícias convenções masculinas e por uma atitude de indignação e de defesa de uma causa. A prosa feminina estaria, no tempo em que foi escrito o ensaio, 1929, ainda excruciada pelo ímpeto de denunciar os agravos à dignidade da mulher, o que Woolf não parece encarar com muita simpatia, em razão de ser fator de distração do que seria uma ficção ideal, e por convenções e valores masculinos como balizas para o que deve ou não ser escrito.
A extensão da participação feminina para os âmbitos públicos propiciaria, na opinião de Virginia Woolf, o aparecimento de mulheres escritoras cujas obras enveredariam pela impessoalidade ou por temas menos restritos ao mundo privado, seja mesmo no romance, seja em gêneros que a autora parece considerar mais importantes, como ensaio, história, biografia etc.
Não tenho meios de atestar seguramente se o vaticínio de Virginia Woolf sobre a participação das mulheres no mundo da escrita confirmou-se. Ela mesma deve ser parte desse desdobramento. Puxando a discussão para os limites da realidade mais próxima do Brasil, as primeiras escritoras que garantiram vaga na história de nossa literatura apenas começam a aparecer na transição do século XIX para o XX. Diferentemente da situação focada por Woolf, a primeira mulher de que me lembro ter aparecido nas aulas de literatura do colégio foi a poeta Francisca Júlia, enquadrada no Parnasianismo, a qual teria abandonado a atividade literária após o casamento. Somente em 1977, oito décadas depois de fundada, a Academia Brasileira de Letras receberia sua primeira imortal, Rachel de Queiroz. Apesar do atraso, se for válido o critério de Woolf sobre a escrita acerca de temas impessoais, temos ótimas referências nacionais em Emília Viotti da Costa e Lilia Moritz Schwarcz no ensaio, na história e na biografia; Cecília Meireles, Adélia Prado, Hilda Hilst, entre outras, na poesia; Rachel de Queiroz e Hilda, de novo, entre outras, no romance de temática mais abrangente, inclusive, de temas sociais.
Fantástico!
ResponderExcluirAdorei o post.
ResponderExcluirApesar de não ter lido o ensaio tbm não concordo com esse apontamento dela sobre o genero literario.