14/03/2015

Diário de Leitura: "o remorso de baltazar serapião", de Valter Hugo Mãe

Arriscado a perder a credibilidade perante as leitoras e os leitores do Palavra de Literatura, venho admitir que comecei a ler os remorsos de baltazar serapião, fora das metas de leitura para o ano e contrariamente ao que dissera em postagem recente sobre passar um período longe dos romances e próximo de livros técnicos.
Sem pretender controlar demais o que pensam de mim, alego, em meu benefício, que esse rumo indica uma personalidade flexível, o que será uma virtude, especialmente do ponto de vista da sabedoria oriental e da metáfora do bambu. Também outra virtude que se pode depreender, agora como leitor que sou, é ter emendado a leitura de outro romance de Valter Hugo Mãe, depois de não ter-me empolgado tanto o primeiro. Fica provado que sou leitor tolerante e não julgo precipitadamente os autores que me caem na mão.

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Ontem à noite, fui à Livraria Cultura do shopping Casa Park, aqui em Brasília, para flanar entre as prateleiras, como sói fazer este blogueiro. Quando circulava pelas estantes de Literatura, lembrei-me de procurar A máquina de fazer espanhóis, o próximo que pretendia ler de Valter Hugo Mãe, por indicação de minhas mais costumeiras e admiradas interlocutoras bibliófilas em redes sociais. Não o achei. Entre outros títulos do autor que constavam da prateleira, meus olhos leram o remorso de baltazar serapião, assim mesmo com as iniciais minúsculas, por opção do autor. Esse já me havia também chamado a atenção, porque gostei do nome, e a promessa dramática do remorso, sentimento tão humano, não foi menos determinante.
Como havia dito, não estava em meus planos começar essa leitura agora. Se eu fosse mais responsável, estaria ocupado com outras linhas. O livro na mão, a loja fecharia em uns vinte minutos, e minha mãe e meu padrasto esperavam-me para lanchar no Marieta do mesmo shopping. Deixara-os à mesa, com meu pedido feito e com o acordo de que me notificariam por celular, quando a salada de atum, folhas, palmito e parmesão chegasse. Premido pelo horário de fechamento da loja e pelo temor de que houvesse falha na comunicação, ainda mais porque a bateria de meu celular despedia-se de mim inclemente, terminei comprando este e mais dois livros, meio por impulso. Perversamente, não me arrependo, embora saiba que estou errado.

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Joguei tênis quase a manhã inteira, voltei para casa, tomei banho e almocei no bairro. Em casa, Homero, meu gato ruivo, e eu adormecemos na cama, ele misturado a meus pés. Quando acordei, umas três horas depois, às 18h, fiz um espresso e recobrei a consciência gradativamente. Procurei livros. À vista de o remorso de baltazar serapião, animei-me a ler as primeiras páginas, para comparar com a prosa de A desumanização. Será que realmente mudaria minha impressão? Eu queria ser convencido pelo texto de que Valter Hugo Mãe me renderia prazeres mais intensos e esperança de renovação da produção literária lusófona.
Como romance, o remorso de baltazar serapião é muito melhor, para meu gosto, do que o outro lido. Há também imagens poéticas de incrível qualidade, contudo elas estão mais adequadamente inseridas ou distribuídas em um enredo envolvente, com personagens variegados e cativantes, mais de carne e osso do que aqueles espectros islandeses que aparecem em A desumanização. Estou tão empolgado, que avancei na leitura até um ponto irreversível, em que não posso mais suspendê-la. Estou feliz por isso.

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Baltazar Serapião é o narrador da história, romance em primeira pessoa como o anterior que comentei aqui. Ele é o filho mais velho de uma família pobre que vive nas terras de Dom Afonso, de quem são como vassalos. A mãe, como a de Halla em A desumanização, é uma mulher problemática, tem o pé torto e um comportamento fora dos padrões, embora isso ainda não tenha sido esmiuçado. 
A família é conhecida com os Sarga, porque mantém uma vaca imprestável com cuidados de animal de estimação ou até de membro da família. Há boatos pelas redondezas que os filhos teriam sido gerados por Sarga, não pela esposa do pai. Isso remeteu-me a Fogo morto, de José Lins do Rego, em que há uma crendice de que o mestre José Amaro é um lobisomem que assola as noites da região. Em ambos os casos, a narrativa parece construída de forma a manter a fé das pessoas como uma versão plausível.

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Uns trechinhos:

"e lho disse assim, depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos outros.""

"era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que deus lhe desse."

"a teresa diaba era assim chamada porque fumegava das ventas quando enervada. não era mentira nem conversa das pessoas, era mesmo assim, inalava muito, bufava, encarnava-se de fúria com facilidade, assim a víamos a encher a cara de sangue como vinho dentro de uma tigela. e depois as narinas abriam-se para fumegarem como canais de vapor para alívio às caldeiras do coração."

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Desde A desumanização, notei que Valter Hugo Mãe adora o verbo "barafustar":

"era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma.""

"a minha mãe deixava de falar comigo e com o aldegundes, porque lhe saíam coisas de mulher boca fora, e barafustar, como fazia, era encher os ouvidos dos homens com ignorâncias perigosas."

"assim se fazia minha mãe, barafustando dia a dia, mas liberta das intenções de nos educar coisas inúteis ou falsas, que fizessem de nós rapazes menos homens ou simplesmente iludidos com um mundo que só as mulheres imaginavam."

"Barafustar" pode significar "debater-se" ou "espernear", "adentrar com ímpeto" ou "emburacar", "protestar" ou "brigar", "esforçar-se" ou "diligenciar" e "responder com maus modos". Tudo isso, segundo o Houaiss.

Um comentário:

  1. Que bom que está gostando! Esse está na minha lista... Tbm acho "A desumanização" meio exagerado. Uma pena que não encontrou "A maquina de fazer espanhóis". Fique de olho em "O filho de mil homens" tbm!
    Estou esperando o momento em que Mia Couto vai entrar nessa estante! :D

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