Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 70% dos brasileiros não leram, por vontade própria, um livro inteiro. Poderiam relativizar essa constatação com a ideia de que atualmente a informação circula em formatos mais ágeis e fragmentados do que o livro. Pois bem, hoje, num trajeto de 15 minutos no ônibus rumo ao trabalho em Genebra, somente na parte de trás do veículo, havia quatro pessoas lendo livros. Não é a salvação da humanidade, nem há aí um valor intrínseco, mas a leitura de um livro ensina, entre tantas outras coisas, a integrar à existência a noção de processos complexos, encadeados, duradouros, que exigem tempo e concentração para atingir uma conclusão ou para assimilar um entendimento.
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17/04/2019
01/03/2015
Da epígrafe
Tive a ideia desta postagem faz algum tempo, antes de ler a análise de John Gledson sobre Memorial de Aires, objeto da postagem "Mais 'Memorial de Aires', John Gledson e a crítica literária". A leitura de Gledson veio bem a calhar, porque exemplifica o que eu pretendia comentar aqui sobre a importância das epígrafes para a interpretação das obras. Como o título dá sentido à leitura da obra, a epígrafe, que às vezes aparece única antes de todas as páginas, outras vezes encima o início de cada capítulo, é uma concessão de pistas do autor para o leitor. Funciona como uma chave interpretativa ou como um rastro para sabermos por onde o escritor quer que passemos.
Epígrafe é sempre um elemento de intertextualidade. Pode ser uma confissão do autor que estamos lendo sobre certa influência recebida de alguém que ele leu. Nesse caso, o livro que traz a epígrafe pode ser uma resposta contrária àquele de onde ela foi tirada ou uma confirmação e um desenvolvimento do que o autor do livro que se está lendo absorveu do outro citado nele.
Por exemplo, no caso de Machado de Assis, que adora jogar com o leitor e traí-lo, a epígrafe pode fornecer uma pista falsa ou, talvez dizendo mais precisamente, enganadora. Pode chamar atenção para uma camada interpretativa e, com isso, ajudar a desviar a vigília acerca do que está mais embaixo. A de Memorial de Aires assume uma dimensão interessantíssima, depois de tomar-se conhecimento da proposta interpretativa de John Gledson. Lida rapidamente, ela pode ser tomada como uma referência inocente ao romance contido na trama, mas, nos detalhes e à luz da desconfiança prescrita por Gledson acerca das motivações das personagens camufladas pela pena simpática do narrador Aires, assume sua função reveladora, em estreita intimidade com toda a estrutura do enredo.
Porque fica lá no comecinho do livro, é comum que não nos lembremos da epígrafe, depois que adentramos as teias da história. Quando se trata da primeira leitura de uma obra, nossa mente costuma encontrar-se ainda naquele estado de abertura esponjosa e pouco focada, ao virarmos as primeiras páginas depois da capa e batemos o olho na frase ali inscrita como mote. Pela importância que tem para a leitura, deveríamos anotar essa frase em um filete de papel e usá-lo de marcador de página.
Como a profecia enigmática do oráculo, a epígrafe só mostra sua função e seu sentido a posteriori, quando os fatos vaticinados já ocorreram, sem dar oportunidade de intervenção modificadora a seus partícipes. Por isso, a leitura não deve ser linear e unidirecional. Em se tratando dos clássicos principalmente, dura a vida inteira e é marcada por vaivéns, sobes e desces, torvelinhos e enxurradas. E pela necessária e constante retomada daquele excerto que abre o livro, a epígrafe.
A seguir, algumas epígrafes de livros integrantes da meta de leitura deste ano:
Memorial de Aires, de Machado de Assis
"Em Lixboa, sobre lo mar,
Marcas novas mandey lavrar..."
Cantiga de Joham Zorro.
"Para veer meu amigo
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig'a preyto talhado,
Alá vou, madre."
Cantiga d'el-rei Dom Denis.
O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago
"Já que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que foste instruído."
Lucas, 1, 1-4.
"Quod scripsi, scripsi."
("O que escrevi, escrevi.")
Pilatos
Crimes que abalaram a Paraíba - vol. 1, de Biu Ramos
"É inútil matar camponeses. Eles sempre viverão."
Raimundo Asfora
Cinzas do Norte, de Milton Hatoum
"Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares."
João Guimarães Rosa
O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro
"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico."
Nelson Rodrigues
Caim, de José Saramago
"Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala."
(Hebreus, 11, 4)
LIVRO DOS DISPARATES
28/02/2015
Mais "Memorial de Aires", John Gledson e a crítica literária
"... a traição do leitor é o desenvolvimento lógico dos modelos de traição dentro dos enredos dos romances e dos contos (de Machado de Assis)."
"... permitindo ao tolo contar sua própria história, Machado faz com que ele pareça sábio."
(John Gledson)
O britânico John Gledson está entre os mais prolíficos e respeitados leitores de Machado de Assis atualmente e foi um grande responsável pela internacionalização do prestígio do brasileiro. Em 1986, publicou Machado de Assis: ficção e história, com uma inovadora interpretação de cunho histórico dos principais romances machadianos. Na apresentação à obra, Nicolau Sevcenko, Professor da USP falecido no ano passado, classifica os livros entre os que marcam épocas, os que mudam um campo de estudos e os que "reconfiguram a percepção de um repertório já conhecido". Diz, em seguida, que o de Gledson logra encaixar-se nas três categorias. Depois de terminar a releitura do Memorial de Aires, aproveitei que o enredo e a forma estavam frescos em minha mente e fui ao capítulo de Gledson sobre ele.
25/02/2015
Oliver Sacks ensina a ler
Hoje quero tratar de leitura sim, mas entendida amplamente. De uma forma bem óbvia, o ato de ler é ininterrupto enquanto estamos em vigília, e haverá até quem diga que, durante o sono, continua. Não me refiro à decodificação de um sistema de escrita, como bem já entenderam leitoras mais sagazes. Toda nossa relação com o mundo é mediada por interpretação, por decodificação, por leitura: de texto escrito, de fisionomias, de um jogo de futebol, do mapa de uma cidade. Não nos cansemos na tentativa de exaurir as possibilidades desse rol. O que me motivou a escrever sobre isso foi uma espécie de carta que o escritor e cientista Oliver Sacks publicou no New York Times com um balanço da própria vida, após descobrir-se portador de um câncer em estado terminal.
Lembro como os títulos de Oliver Sacks chamavam-me a atenção, na década de 1990, quando comecei a frequentar livrarias por iniciativa própria e a consumir horas a fio correndo os olhos por cada lombada de livro nas prateleiras. As edições nacionais, saídas pela Companhia das Letras, tinham cintilantes capas coloridas, com uma sobrecapa em plástico relativamente rígido, transparente em grande medida, com título e nome do autor em letras brancas. O interesse que me despertavam essas obras sempre existiu e persiste, mas nunca foi suficiente para me mobilizar para a leitura efetiva. Pouco tempo depois, comecei a cursar Medicina, provavelmente por isso deixei de lado a ideia de conhecer as histórias de Oliver Sacks sobre pacientes e condições neurológicas. Explico-me: naquela época, eu preferia matar minha vontade de ler com assuntos distintos daqueles que me ocupavam na faculdade.
Livros de Oliver Sacks, inclusive, em edições da Companhia de Bolso, mais em conta. |
Os livros de Sacks que eu nunca li são encimados por títulos instigantes, sinestésicos, que rompem com o automatismo da linguagem corrente: Vendo vozes, Alucinações musicais, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Um antropólogo em Marte e por aí vai. Por resenhas e comentários que li ao longo dos anos, sei que o autor pinça casos emblemáticos de sua lida profissional e, a partir deles, discute assuntos menos ligados à ciência dura e mais à Filosofia e às humanidades.
Em 19 de fevereiro passado, em pleno Carnaval, tempo de viver como se não houvesse amanhã, foi publicado o texto de Sacks que mencionei no primeiro parágrafo, intitulado "My own life" (Minha própria vida). Comovente, fez-me pensar de um jeito mais agudo sobre nossa finitude e sobre como a consciência e a iminência dessa condição são cruciais para nossa abordagem da existência. Tratei disso na postagem sobre o poema "Consoada", de Manuel Bandeira, quando comparei a atitude do eu poético, que mantém sua rotina comezinha malgrado a expectativa da morte, com a letra da música de Paulinho Moska que questiona "o que você faria se só lhe restasse um dia?"
Um livro que me marcou bastante e, pasmem, trata de juros, mas de uma maneira intuitiva e humana, foi O valor do amanhã, de Eduardo Gianetti da Fonseca. Para quem não lembra, ele era o principal nome econômico da campanha da presidenciável Marina Silva. Desde que o li, sempre me ocorreu uma formulação que provavelmente não é de Gianetti, porém chegou-me por meio de sua pena: o ser humano de racionalidade média pauta sua vida de acordo com a certeza de que morrerá e com a dúvida quanto ao tempo que o separa de seu fim. Morreremos, mas ignoramos quando, e, devo concordar com o autor, o modo como lemos esse dilema entre uma certeza e uma dúvida interligadas condiciona essencialmente nosso viver.
O valor do amanhã foi lançado também em edição econômica. |
Com seus 81 anos e com a consciência aguçada, Oliver Sacks certamente já recebia acenos da morte de modo mais vivo, com o perdão da antítese. Por exemplo, como diz no texto do New York Times, testemunhara o falecimento de muitos de sua geração. Extintos seus avós e seus pais do mundo exterior à memória, qualquer ente humano começa a encarar a morte paulatinamente mais olho-no-olho, pois deixa de contar com as talvez ilusórias fileiras protetoras das gerações mais velhas, que, por natureza, esperamos que desapareçam antes de nós. Mesmo assim, o impacto resultante da notícia que tornou mais iminente sua morte foi sentido por Sacks e provocou o balanço ou a releitura de seus dias.
Quantos livros você pretende ler no ano? Quão ligeira e superficial ou detida e atenta será a leitura que você fará de cada livro? Do livro que você precisa ler para o Mestrado e daquele que degusta sem obrigação? Como dividirá sua atenção entre ficção comercial e obras de arte literária? Se tivesse certeza de que morreria amanhã, leria alguma linha? De qual livro? Assim como a interpretação de uma obra escrita envolve antecipações, mudanças de expectativas, retorno a trechos passados, saltos ou visadas mais ligeiras, a leitura do tempo também. De uma leitura maior, a de nosso tempo sobre a Terra, dependem todas as demais que fazemos, a dos livros, inclusive. No penúltimo parágrafo de seu texto de balanço, Sacks surpreendeu-me e, ao mesmo tempo, cativou-me, ao colocar sua experiência como escritor e com leitores entre os ápices da vida que levou:
"I have read and traveled and thought and written. I have had an intercourse with the world, the special intercourse of writers and readers."("Eu li e viajei e pensei e escrevi. Mantive intercurso com o mundo, o especial intercurso de escritores e leitores.")
O sentimento de gratidão que Oliver Sacks confessa predominar em seu espírito atualmente, eu dirijo a ele, por ter compartilhado conosco sua experiência intimamente dolorosa e excruciante, imagino eu. No diálogo platônico Fédon, Sócrates, à espera da execução de sua sentença fatal, define a Filosofia como o aprendizado para a morte. Não deve haver matéria mais difícil no currículo humano. O texto de Sacks ajuda a aprender. Espero que termine seus dias fazendo felizes as pessoas que lhe são mais próximas e também se sentindo feliz. Sou capaz de apostar que, nos sagrados dias que lhe restam, ele estará lendo.
"A morte de Sócrates", de Jacques-Louis David. |
19/02/2015
Leitura a lápis - parte 2
Em 10 de fevereiro, na postagem Leitura a lápis, comentei o hábito de fazer grifos e anotações nas margens dos livros. Depois disso, ocorreu-me a ideia de realizar uma promoção no Palavra de Literatura, cujas regras de participação os leitores podem ler aqui. Trata-se do sorteio de um exemplar do romance Memorial de Aires, de Machado de Assis, com os sublinhados e as notas que eu fiz em minha edição do livro transcritos. Espero que a leitura das duas postagens mencionadas seja suficiente para contextualizar tudo.
(Homero escrevendo uma parte desta postagem. Juro que a bagunça aí foi obra dele)
Passemos agora ao motivo da postagem de hoje. Aconteceu que a leitora Marcela Yoneda, depois de ler a já mencionada Leitura a lápis, fez um rápido comentário no campo reservado para tal, no blog, mas, ao mesmo tempo, mandou-me um texto maior, que pode ser considerado uma crônica, com um relato e algumas reflexões sobre a ocasião em que pegou emprestado da Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulistana, um exemplar que lhe veio anotado e grifado, como o que estou oferecendo na promoção.
Em seu comentário rápido no blog, Marcela questionou-me sobre se eu - que defendi grifos e notas sobre o papel dos livros, em detrimento daquela posição de veneração desse objeto, a qual faz muita gente querer, a qualquer custo, preservá-lo incólume a todo desgaste - retomando, se eu sou a favor da liberação de realces e de inscrições em livros de bibliotecas. O sujeito vai a uma das raras que existem no país e, chegando lá, ao retirar um exemplar do acervo, descobre, como Marcela, que as linhas estão comentadas, sublinhadas, marcadas etc.
Se a moda pega, quem sabe não passam a fazer isso mesmo nas livrarias? Eu, que defendi o direito, quase como um dever, de deixar nos livros lidos os rastros da leitura realizada, compraria um exemplar assim? Sei que, nos sebos, de forma geral, obras grifadas valem menos. Pode procurar, por exemplo, na Estante Virtual, que esse aspecto é frequentemente mencionado nas descrições do estado dos exemplares anunciados.
Minha resposta a Marcela recorre ao brasileiríssimo "depende" intransitivo. Depende. Imagina se o livro pertenceu a Aldir Blanc, e as páginas registram as leituras que ele fez? Certa feita, comprei um exemplar usado no sebo Berinjela, no Centro do Rio de Janeiro, de presente para minha mãe. E não é que o danado do dito cujo pertenceu a Aldir Blanc e trazia a assinatura do compositor na folha de rosto? Nesse caso, o valor do objeto pode ser elevado pela fama em si do antigo dono ou pelo interesse, inclusive, coletivo, pelo modo como aquela personalidade leu determinada obra. Já imaginou se eu pego a edição de Casa-grande & senzala lida e anotada por José Lins do Rego, tendo em conta a importância que a obra de Freyre teve para a de Zé Lins?
(São comuns edições com notas de especialistas)
No caso de Marcela, não podemos ter certeza, mas aparentemente o livro que ela emprestou da Biblioteca Mário de Andrade não foi anotado por Sérgio Buarque de Holanda ou por Joaquim Nabuco. Sim o foi por uma pessoa comum como nós. Digo "comum" em certo sentido, porque, pelo que me disse o relato de Marcela, quem se atreveu a intervir, a caneta ou a lápis, nas folhas pertencentes ao Pode Público, foi uma leitora acima da média, com bagagem considerável, que chamou a atenção de Marcela para passagens relevantes e ainda proporcionou que ela conhecesse um excelente autor, cuja obra dialogava com aquela à mão e cujo nome foi posto ali ante seus olhos.
Seria difícil que a experiência contada por Marcela se repetisse com a maioria dos grifos de livros em biblioteca, caso esses fossem liberados pela administração do lugar. No e-mail que lhe mandei, à guisa de resposta, aventei a possibilidade de a instituição ter um cadastro de leitores que, preenchidos certos requisitos, formariam uma equipe de voluntários autorizada a fazer grifos, ao ler as obras. Por exemplo, clientes assíduos da biblioteca que comprovassem ter formação em determinada área seriam autorizados e até estimulados a grifar e anotar livros da mesma área. É uma ideia, mas não necessariamente se deveria vincular a permissão para sublinhar e escrever ao currículo profissional do usuário.
Feitas essas considerações, que já ultrapassaram demais o que eu planejava como apresentação ao texto de Marcela, compartilho-o com vocês e estimulo todos a visitarem o blog dela (Blog da Mar), que me parece uma ótima cronista. Aí vai:
Então vamos lá: confesso que ainda tenho escrúpulos!
Dificilmente escrevo em livros.
Já tive muito mais. Atualmente, se o livro for meu, faço grifos, chaves, estrelinhas ou qualquer outra marcação para chamar minha posterior atenção em algum trecho que se destacou aos meus olhos ou em palavras que não sei o significado.
Mas frases não dá.
Lembro dos meus pais me ensinando: em livro não se escreve, não se faz pinturas e nem rabiscos. É obra de alguém e não se escreve na obra de alguém. Se for emprestado, devolva do mesmo jeitinho que pegou e agradeça.
Hoje penso que esse argumento é um respeito exagerado, afinal de contas anotar alguma coisa na obra de alguém não vai alterar a obra, mas pensando em propriedade alheia, cabe.
O fato é que levei ao pé da letra a “assepsia” das páginas por muito tempo.
Os questionamentos, pesquisas e dúvidas e ignorâncias anotava - e ainda anoto - em um caderno separado, fazendo as devidas referências.
Se o livro não me pertencer, nem pensar! Sem grifos, sem asterisco, sem marcação alguma.
Não tenho nada contra se fizerem em algum meu. Já aconteceu, mas não gosto de escrever no dos outros.
Para presentear faço questão de escrever dedicatória na primeira página.
Como geralmente presenteio com livros que já li, acho simpático deixar registrado que desejo que a pessoa presenteada compartilhe a mesma experiência que me agradou. Que passe a fazer parte do universo dela.
Lembro que fiquei estarrecida a primeira vez que peguei um livro na Biblioteca Mário de Andrade (SP) que estava forrado de anotações.
Procurei a funcionária para comentar a respeito e a reação dela foi pior do que a minha.
Ficou triste e perguntou se eu levaria daquele jeito, se preferia deixar e ofereceu-se para ver se havia outro exemplar disponível, “limpinho”.
Retirei o livro todo “rabiscado”.
Prometi a mim mesma que não olharia as anotações para não xeretar os pensamentos de ninguém.
Achava que seria um desrespeito – uma certa intromissão -saber o que uma pessoa desconhecida escreveu num livro. Bobagem, eu sei. Mas foi o que pensei à época.
Mais tarde, em casa, não cumpri a promessa e posso dizer que não li o livro: estudei-o, meticulosamente.
Todas as anotações haviam sido feitas por uma estudante.
Pelos escritos, concluí que a professora pedira a leitura e moça (os dizeres e a letra pareciam femininos) foi anotando: “falar para a profa que pode ser interpretado assim ou assado, por causa disso e disto”; “vai cair na prova”; e fazia colocações pertinentes, paralelos com outras obras e analogias.
Nos trechos que ela mais gostou desenhou coraçãozinhos. (mais uma pista de que a pessoa era uma mulher – rapazes não costumam desenhar corações nos cadernos; ou desenham? Sei lá! Tanto faz!).
E a pessoa fez tudo a lápis - grafite.
Foi por causa das anotações da suposta garota que conheci o escritor “Mia Couto”.
Ela escreveu o nome dele na lateral e até achei que eu não estava lendo corretamente.
Achei que talvez ela tivesse escrito “Meu Conto” mas pesquisei “miu”, “min”, “mio” e finalmente “mia”.
A Biblioteca Mário de Andrade é toda informatizada hoje em dia e é fácil achar as obras através dos filtros disponíveis.
Sempre acho uma maravilha as buscas por lá - sou da época das fichinhas ensebadas pelas muitas dedilhadas dos usuários. Mouses ensebados são mais ágeis! rsrs
Só não me pergunte qual foi o livro “enfeitado” de comentários que retirei.
Não consigo lembrar. Já pensei e pensei e não lembro. Isso foi há muitos anos, logo que informatizaram o sistema de acesso ao público.
Quando fui devolver o bendito livro procurei a mesma funcionária da retirada e comentei que as anotações eram ótimas, sugerindo que a Biblioteca não as apagasse porque poderiam ser úteis a outros leitores e estudantes.
Não sei o que ela fez.
Por ela ou por norma da Biblioteca, talvez tenha apagado tudo, mas na hora que mostrei as anotações ela achou muito interessante e ficou pensativa.
Quem sabe leu o livro justamente por causa das anotações?
E, quem sabe, não buscou o outro autor também?
Conhecimento passado involuntariamente no caso da estudante para mim. Proposital da minha parte para a funcionária.
A questão é que se todos anotarem nos livros que são de acesso público vai virar uma grande confusão pelo excesso de informação e pelo formato – alguns escreverão com canetas, outros com lápis para distinguir do leitor anterior.
Não sei.
Lembro que, na época, fiquei muito feliz pelo “estudo” do livro, pelo conhecimento de novo autor que um desconhecido me proporcionou e pela constatação de que havia gente levando os estudos a sério.
É isso.
Lembrei do fato ao ler sua última postagem e quis te contar a experiência.
Obrigada.
Marcela Yoneda
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RLCA
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21:12
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Marcela Yoneda
17/02/2015
Rapidinha (de Carnaval) 2
Conforme programado, talvez com um pouco de atraso, terminei a leitura meio obrigatória de História das Relações Internacionais Contemporâneas, que estabeleci como condição para iniciar O Anjo Pornográfico. No meio do caminho, porém, tinha uma ida à livraria, de onde saí, no sábado de Carnaval, com os três livros que postei no Instagram. Comecei a ler Literatura Brasileira: modos de usar, do professor da UFRGS Luís Augusto Fischer, ainda no shopping onde o comprei, e terminei-o só um pouco depois do de Relações Internacionais.
Vim só dar notícias, dizer que atribuí quatro estrelas ao livrinho de Fischer - que será objeto de postagem própria - e consignar minha alegria de começar a virar as páginas da biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, com grandes expectativas.
Vim só dar notícias, dizer que atribuí quatro estrelas ao livrinho de Fischer - que será objeto de postagem própria - e consignar minha alegria de começar a virar as páginas da biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, com grandes expectativas.
Postado por
RLCA
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03:58
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15/02/2015
Rapidinha
Como vai o Carnaval das leitoras e dos leitores? Alguém optou pela temperança e anda agarrada com sua leitura da vez, no lugar de sair pulando por aí como cururu? Eu fiquei em Brasília, decidi aproveitar o sossego em que a cidade fica, sempre que há um feriado prolongado. Como um casal de amigos está fazendo conexão prolongada aqui antes de partir em viagem ao exterior, pouco me peguei lendo páginas. Faltam trinta para terminar História das Relações Internacionais contemporâneas, que duvido muito que interesse à maioria de vocês. Quando os amigos partirem, na tarde de hoje, vou correr as últimas folhas desse livro, para, enfim, começar O Anjo Pornográfico, sobre o qual já postei.
09/02/2015
Leitura a lápis
Hoje o dia no trabalho foi pesado, cheio de responsabilidades. Depois do expediente, joguei pouco mais de duas horas de tênis, que relaxa e ajuda a saúde. Cheguei bem disposto para atualizar o blog.
No clube de leitura formado pelo pessoal de meu trabalho, a que me referi na postagem sobre Dois irmãos, surgiu uma discussão sobre grifar e anotar os livros. Já há algum tempo, esse assunto me surgiu como bom mote para uma postagem. Como o Palavra de Literatura é, lato sensu, um espaço da bibliofilia, cabem umas pinceladas sobre isso.
Eu, em meus primeiros anos de leitor, tive uma fase de veneração pelo livro como objeto. Nada de riscar, de anotar, de usar a orelha como marcador de página e, heresia das heresias, de abrir o coitado do folhoso como um caderno de arame, de forma que uma capa encostasse na outra. Meu pai, quando via uma traça saracotear para fora de um amontoado de papéis, xingava demais o coitado do bicho, o que sugere uma das fontes de meu zelo pelos livros. Creio que nunca cheguei a ser doentio nesse cuidado, mas sentia raiva de quem amassasse, dobrasse, riscasse, ou maculasse os de minha propriedade. Para preservar a amizade, era melhor nem emprestar.
Uma professora minha de português, posteriormente também patroa no curso dela e uma das principais incentivadoras, tanto pelo exemplo quanto pelo discurso, de minha paixão pelos livros, começou a quebrar o tratamento sacrossanto que eu dedicava a eles. Lembro que, certa vez, depois que eu lhe devolvi um exemplar emprestado, ela lamentou que eu não o tivesse grifado nem anotado, porque tinha curiosidade de saber o que chamara minha atenção naquela prosa. Era uma obra de Juan José Saer, escritor argentino, intitulada O enteado (recomendo!).
Outro motivo para ter mudado minha reticência quanto aos grifos e às notas foi a leitura de Como se faz uma tese, de Umberto Eco. Meu exemplar ficou no Nordeste (eu moro em Brasília), mas, felizmente para mim e para vocês, encontrei com facilidade o trecho que me interessava mostrar-lhes. Depois de dar várias instruções sobre como e por que grifar, leia-se o que diz Umberto Eco sobre a intocabilidade dos livros, o que vai em português europeu, que foi o que achei:
"Os sublinhados personalizam o livro. Assinalam as pistas do nosso interesse. Permitem-nos voltar ao mesmo livro muito tempo depois, detectando imediatamente aquilo que nos havia interessado."
"Se o livro é vosso e não tem valor de antiguidade, não se deve hesitar em anotá-lo. Não deveis dar crédito àqueles que dizem que os livros são intocáveis. Os livros respeitam-se usando-os e não deixando-os quietos."
Depois desse conselho de um dos mais importantes pensadores vivos atualmente, relaxei. Não foi só questão de autoridade: ele convenceu-me. Parece-me que mais vale garantir o prazer e a utilidade de, ao passar em revista um livro lido, reencontrar-se com os momentos marcantes da leitura, do que deixá-lo intocado. Fiquei tão persuadido, que passei a grifar com caneta. Sublinhava, comentava, discordava, exclamava, tudo naquele azul Bic indelével de esferográfica comum. O resultado foi que minha inexperiência traduzia-se em alguma falta de critério, e, aos poucos, notei que, ao folhear títulos já lidos, discordava da relevância de certos destaques. Foi o caso, por exemplo, daquela minha edição da Odisseia publicada pela Cultrix, que viu quem leu a postagem sobre minha coleção de traduções dessa obra.
O arrependimento do grifo não é algo tão grave. Sempre se pode encarar um realce que a gente descredencia depois como um registro histórico, como rastro de nosso passado mental. O confronto com ele pode ser motivo para reflexões proveitosas. De todo modo, a experiência conduziu-me ao estado atual em que espalho lápis por onde posso e sempre tenho um à mão, para a leitura da vez. Leio a lápis tanto quanto a olhos. Quando me dano a ler desarmado de um coto que seja de grafite e deparo com um trecho bonito, interessante, palpitante, é comum interromper o fluxo, pelo medo de, passando as páginas, esquecer-me dele depois.
No clube de leitura formado pelo pessoal de meu trabalho, a que me referi na postagem sobre Dois irmãos, surgiu uma discussão sobre grifar e anotar os livros. Já há algum tempo, esse assunto me surgiu como bom mote para uma postagem. Como o Palavra de Literatura é, lato sensu, um espaço da bibliofilia, cabem umas pinceladas sobre isso.
Eu, em meus primeiros anos de leitor, tive uma fase de veneração pelo livro como objeto. Nada de riscar, de anotar, de usar a orelha como marcador de página e, heresia das heresias, de abrir o coitado do folhoso como um caderno de arame, de forma que uma capa encostasse na outra. Meu pai, quando via uma traça saracotear para fora de um amontoado de papéis, xingava demais o coitado do bicho, o que sugere uma das fontes de meu zelo pelos livros. Creio que nunca cheguei a ser doentio nesse cuidado, mas sentia raiva de quem amassasse, dobrasse, riscasse, ou maculasse os de minha propriedade. Para preservar a amizade, era melhor nem emprestar.
Uma professora minha de português, posteriormente também patroa no curso dela e uma das principais incentivadoras, tanto pelo exemplo quanto pelo discurso, de minha paixão pelos livros, começou a quebrar o tratamento sacrossanto que eu dedicava a eles. Lembro que, certa vez, depois que eu lhe devolvi um exemplar emprestado, ela lamentou que eu não o tivesse grifado nem anotado, porque tinha curiosidade de saber o que chamara minha atenção naquela prosa. Era uma obra de Juan José Saer, escritor argentino, intitulada O enteado (recomendo!).
Outro motivo para ter mudado minha reticência quanto aos grifos e às notas foi a leitura de Como se faz uma tese, de Umberto Eco. Meu exemplar ficou no Nordeste (eu moro em Brasília), mas, felizmente para mim e para vocês, encontrei com facilidade o trecho que me interessava mostrar-lhes. Depois de dar várias instruções sobre como e por que grifar, leia-se o que diz Umberto Eco sobre a intocabilidade dos livros, o que vai em português europeu, que foi o que achei:
"Os sublinhados personalizam o livro. Assinalam as pistas do nosso interesse. Permitem-nos voltar ao mesmo livro muito tempo depois, detectando imediatamente aquilo que nos havia interessado."
"Se o livro é vosso e não tem valor de antiguidade, não se deve hesitar em anotá-lo. Não deveis dar crédito àqueles que dizem que os livros são intocáveis. Os livros respeitam-se usando-os e não deixando-os quietos."
Depois desse conselho de um dos mais importantes pensadores vivos atualmente, relaxei. Não foi só questão de autoridade: ele convenceu-me. Parece-me que mais vale garantir o prazer e a utilidade de, ao passar em revista um livro lido, reencontrar-se com os momentos marcantes da leitura, do que deixá-lo intocado. Fiquei tão persuadido, que passei a grifar com caneta. Sublinhava, comentava, discordava, exclamava, tudo naquele azul Bic indelével de esferográfica comum. O resultado foi que minha inexperiência traduzia-se em alguma falta de critério, e, aos poucos, notei que, ao folhear títulos já lidos, discordava da relevância de certos destaques. Foi o caso, por exemplo, daquela minha edição da Odisseia publicada pela Cultrix, que viu quem leu a postagem sobre minha coleção de traduções dessa obra.
O arrependimento do grifo não é algo tão grave. Sempre se pode encarar um realce que a gente descredencia depois como um registro histórico, como rastro de nosso passado mental. O confronto com ele pode ser motivo para reflexões proveitosas. De todo modo, a experiência conduziu-me ao estado atual em que espalho lápis por onde posso e sempre tenho um à mão, para a leitura da vez. Leio a lápis tanto quanto a olhos. Quando me dano a ler desarmado de um coto que seja de grafite e deparo com um trecho bonito, interessante, palpitante, é comum interromper o fluxo, pelo medo de, passando as páginas, esquecer-me dele depois.
(Meus grifos em Memorial de Aires, de Machado de Assis: leitura em caneta, releitura em grafite)
Há quem alimente um ideal de isenção e independência e não queira nem influenciar nem ser influenciado pelos grifos alheios, ao ler um livro. Quem pensa assim usa esse argumento, para falar contra os riscos nas páginas. Não sabem que, quando levantamos a capa, nossa mente vem já grifada e anotada por inúmeras influências do mundo, e essa suposta independência de nossa leitura não passa mesmo de um ideal. A leitura é sempre sua, mesmo com condicionalidades e determinações externas.
Termino esta postagem com a citação de um de meus dez filmes mais queridos, que desperta enorme carga emocional em mim, cada vez que o revejo. Se você que me lê adora livros e se considera um bibliófilo tem obrigação de assistir a Nunca te vi, sempre te amei (84 Charing Cross Road). Certamente farei uma postagem exclusiva para essa película, mas vale dizer algo a respeito do enredo, para contextualizar a citação. Imagine-se uma escritora de humor fino, personalidade forte, inteligência aguda, na margem ocidental do Atlântico, em Nova York, interpretada por Anne Bancroft; no outro lado do mesmo oceano, em Londres, um livreiro sereno, contido, culto e diligente interpretado por Anthony Hopkins.
Agora pensem em um filme quase todo construído sobre as cartas, as ordens de compra e as remessas de livros entre ambos. A amizade entre a escritora e os funcionários da livraria londrina enseja o envio por eles de um exemplar para ela, à guisa de presente. Como bons profissionais do ramo, mandam uma mensagem escrita à parte, em um cartão, não no livro. A seguir, leiam o que diz Helene Hanff, a presenteada, sobre tudo isso, que traduz perfeitamente o que sinto sobre grifos e anotações em livros (primeiro minha tradução livre, depois o original em inglês):
"Muito mau vocês terem sido tão exageradamente cuidadosos, que me escreveram em um cartão, em vez de fazê-lo na folha de rosto. É o livreiro dentro vocês todos. Recearam desvalorizar o livro. Teriam aumentado seu valor para esta dona e possivelmente para os futuros donos. Eu adoro inscrições em folhas de rosto e anotações nas margens. Gosto da sensação de camaradagem ao passar páginas que outra pessoa passou e ao ler passagens para as quais alguém, muito tempo atrás, chamou minha atenção."
"Too bad you were so over-courteous and put the inscription on a card instead of on the flyleaf. It's the bookseller in you all. You were afraid you'd decrease its value. You'd have increased it for this owner and possibly for future owners. I love inscriptions on flyleaves and notes in margins. I like the comradely sense of turning pages someone else turned and reading passages someone long gone has called my attention to."
Termino esta postagem com a citação de um de meus dez filmes mais queridos, que desperta enorme carga emocional em mim, cada vez que o revejo. Se você que me lê adora livros e se considera um bibliófilo tem obrigação de assistir a Nunca te vi, sempre te amei (84 Charing Cross Road). Certamente farei uma postagem exclusiva para essa película, mas vale dizer algo a respeito do enredo, para contextualizar a citação. Imagine-se uma escritora de humor fino, personalidade forte, inteligência aguda, na margem ocidental do Atlântico, em Nova York, interpretada por Anne Bancroft; no outro lado do mesmo oceano, em Londres, um livreiro sereno, contido, culto e diligente interpretado por Anthony Hopkins.
Agora pensem em um filme quase todo construído sobre as cartas, as ordens de compra e as remessas de livros entre ambos. A amizade entre a escritora e os funcionários da livraria londrina enseja o envio por eles de um exemplar para ela, à guisa de presente. Como bons profissionais do ramo, mandam uma mensagem escrita à parte, em um cartão, não no livro. A seguir, leiam o que diz Helene Hanff, a presenteada, sobre tudo isso, que traduz perfeitamente o que sinto sobre grifos e anotações em livros (primeiro minha tradução livre, depois o original em inglês):
"Muito mau vocês terem sido tão exageradamente cuidadosos, que me escreveram em um cartão, em vez de fazê-lo na folha de rosto. É o livreiro dentro vocês todos. Recearam desvalorizar o livro. Teriam aumentado seu valor para esta dona e possivelmente para os futuros donos. Eu adoro inscrições em folhas de rosto e anotações nas margens. Gosto da sensação de camaradagem ao passar páginas que outra pessoa passou e ao ler passagens para as quais alguém, muito tempo atrás, chamou minha atenção."
"Too bad you were so over-courteous and put the inscription on a card instead of on the flyleaf. It's the bookseller in you all. You were afraid you'd decrease its value. You'd have increased it for this owner and possibly for future owners. I love inscriptions on flyleaves and notes in margins. I like the comradely sense of turning pages someone else turned and reading passages someone long gone has called my attention to."
07/02/2015
Metas de leitura de 2015: "O anjo pornográfico"
Está na agulha, para leitura ainda este mês, a primeira biografia que lerei no ano, de Ruy Castro, mestre do gênero no Brasil. Trata-se de O anjo pornográfico, publicação da editora Companhia das Letras. Lembram que, na postagem sobre Dois irmãos, mencionei um clube de leitura formado com amigos meus do trabalho? Pois, decidimos encarar a biografia de Nelson Rodrigues. De Ruy Castro, há também as famosas e elogiadas biografias que tomaram por objeto as vidas de Carmem Miranda e de Garrincha.
Estou particularmente interessado pelo gênero "biografia", porque ando com a coceira de escrever uma. Botei na cabeça, por isso, que deveria ler o máximo delas que pudesse, prestando especial atenção à construção, à forma, à organização das informações sobre a vida do biografado, às escolhas do autor sobre o que foi relevante vir a público. Uma de minhas intenções primordiais, com essa leitura, é assimilar a forma. A escolha do grupo veio ao encontro de um de meus projetos.
Pelo fato de tratar da vida de um escritor e provavelmente incluir, por isso, informações sobre o mundo literário da época, com a presença de outros escritores, de intelectuais, de jornalistas e de figuras dos bastidores da cena editorial, nutro a expectativa de também ter acesso a informações históricas de particular interesse para mim, que curto literatura e gosto de escrever. Espero, por exemplo, saber como Nelson Rodrigues publicou seu primeiro livro, se sua inclinação para a escrita surgiu desde cedo, se foi espontânea ou estimulada, se teve crises de criatividade, como encarou eventuais insucessos de público ou de crítica etc.
Conforme prometi na postagem sobre as metas de leitura para 2015, compartilhei um pouco dos critérios que usei para fazer minhas escolhas de leitura deste ano e transmiti algumas informações elementares sobre o livro que foram importantes para a seleção. Aos poucos, farei o mesmo com os outros títulos da lista deste ano. Igualmente, quando terminar as leituras, voltarei com minhas impressões, com a confirmação ou com a rejeição de minhas expectativas quanto a elas, com informações mais detalhadas que permitam vocês decidirem se vale a pena incluir em suas listas e com minha avaliação geral de 1 a 5 estrelas.
04/02/2015
"A coruja", poema de Sérgio de Castro Pinto
De um livrinho de poemas de minha estante, Zoo imaginário, do paraibano Sérgio de Castro Pinto, compartilho "A coruja". Considero os textos deste livro pertencentes àquele raro e difícil tipo de obra capaz de comunicar-se com crianças e com adultos de todas as idades, como ocorre aos filmes de Chaplin.
As ilustrações são desenhos a bico de pena do artista plástico Flávio Tavares, que não se deve confundir com o escritor homônimo. A publicação é da editora Escrituras.
A coruja
são todo ouvidos
os teus olhos
de vigília.
olhos acesos,
luzeiros
de sabedoria.
olhos atentos
à geografia
do dentro,
és uma concha.
um encorujado
caramujo.
monja em voto de silêncio.
Meta de leitura 2015: introdução
Achei uma boa comentar com vocês a lista de livros que pretendo ler em 2015. Pretendo explicar o que norteou a escolha dos livros e trocar impressões com @s leitor@s do blog. Também acho que será um bom exercício refletir publicamente sobre a formação dessa lista e, no final do ano, ao olhar retrospectivamente as postagens desta série, avaliar se foi cumprida, o que ficou de fora, o que entrou e não estava previsto e por quê.
Em 2014, pela primeira vez, eu estabeleci uma meta numérica de leitura. Um amigo meu tinha assumido um desafio no Goodreads, uma rede social e aplicativo para leitores, e eu animei-me a seguir o exemplo. Julguei que ler 25 livros seria razoável, tendo em vista o trabalho, as obrigações assumidas, a vida social. Terminei em 30. Com esse resultado, resolvi aumentar em 10%, pelo menos, a nova meta. Para este ano, pretendo ler 33 folhosos, no mínimo, o que resulta em uma média mensal de menos de três, bem factível.
Para escolher os títulos, eu tinha de conciliar minha livre vontade de ler com as leituras que, por projetos pessoais que me atribuí, teriam de ser feitas. Dadas essas condições, criei cinco categorias, pelas quais distribuí os livros que digerirei em 2015.
Uma categoria incluirá os volumes relacionados a minha área de atuação profissional, as Relações Internacionais. Essa foi uma necessidade ainda maior, porque provavelmente darei algumas aulas sobre o tema.
Outra categoria vincula-se um pouco à carreira, mas provavelmente existiria de qualquer forma, por interesse pessoal: livros em língua estrangeira. Nessa, defini que serão lidos quatro escritos em inglês, dois em espanhol e mais dois em francês. Minha intenção é praticar os idiomas e entreter-me. Um critério essencial é que a obra tenha sido escrita originalmente na língua estrangeira em questão. Por ora, aqueles em espanhol serão El General en su laberinto, de García Márquez, e um de contos do peruano Julio Ramón Ribeyro, que comprei quando estive em Lima. Em inglês, também sujeitos a mudança, serão Oliver Twist, A single man, The remains of the day e Purple hibiscus. Em francês, ainda não defini.
Duas outras categorias ligam-se a um projeto de livro/pesquisa que eu pretendo levar a cabo e a um tema, o Nordeste, que decidi estudar melhor, para poder entender e discutir. Na primeira das categorias citadas, estão, até agora, Fogo morto, O espetáculo das raças e Política e parentela na Paraíba. Na segunda, A invenção do Nordeste, Cangaceiros, Pedra bonita, a biografia de Padre Cícero escrita por Lira Neto e o primeiro volume de Crimes que abalaram a Paraíba, que já está lido.
O quinto grupo é o melhor: chama-se "livre". Nele, eu incluo as leituras que me derem na telha. Quatro já foram: O evangelho segundo Jesus Cristo, Cinzas do Norte, A sombra do meio-dia e Caim. Dos que constam da lista, faltam: Odisseia, em nova tradução de Christian Werner, lançada pela Cosac & Naify (foi meu autopresente de aniversário em 2014); as duas últimas biografias de Getúlio escritas por Lira Neto (autor que está bombando em minha lista, notaram?), O anjo pornográfico, Chatô, O mestre e Margarida e Memorial de Aires.
Aos poucos, vou singularizar cada livro mencionado em um texto próprio, em que detalharei informações sobre eles e explicarei por que despertaram meu interesse e candidataram-se a ocupar meu precioso tempo. E vocês? Fazem lista com metas de leituras? Como as organizam? Já leram, ou pretendem ler algum dos livros que mencionei? Diz aí, vai.
Postado por
RLCA
às
07:05
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02/02/2015
Visita à livraria
Ontem visitei a Livraria Cultura (Shopping Iguatemi Brasília) e encontrei livros da Cosac&Naify com 40% de desconto. Vários folhosos preciosos! Nenhuma editora consegue equiparar-se à Cosac&Naify, quando se trata de fazer livros belos. Eles aprazem aos olhos, ao tato e ao olfato. A editora explora magistralmente as possibilidades estéticas do objeto livro. Só não arrisquei ainda lamber ou escutar as páginas, mas são tão estimulantes, que não tardo a experimentar fazê-lo. Além disso, a seleção editorial é espetacular. Na visita de ontem, comprei um de ensaios de Virginia Woolf, "O valor do riso", e o romance russo "Oblómov", de Ivan Goncharov, em tradução de Rubens Figueiredo.
(Comprei por indicação de um amigo, um dos leitores mais interessantes que conheço)
(Comprei, porque gosto de ensaios, e havia alguns bem interessantes, como os que tratam da experiência de leitura)
20/01/2015
"Dois irmãos": meus trechos prediletos
Depois da postagem anterior sobre Dois irmãos, deixo aqui meus trechos preferidos do livro:
A sala fervilhava de foliões, e no meio das tantas cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhantes ao dele, pertinho do rosto que admirava.Quando as casas da rua explodiam de gritos, Zana me mandava zarelhar pela vizinhança, eu cascalhava tudo, roía os ossos apodrecidos dos vizinhos. Era cobra nisso. Memorizava as cenas, depois contava tudo para Zana, que se deliciava, os olhos saltando de tanta curiosidade: "Conta logo, menino, mas devagar... sem pressa". Eu me esmerava nos detalhes, inventava, fazia uma pausa, absorto, como se me esforçasse para lembrar (...).(...) mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado.Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio.Não se sabe o que conversaram, mas cada uma tateava o território da outra, ambas cheias de gestos e disfarces, e muito nervosas, atrizes em noite de estreia.Era um rapaz esquisito mesmo, dissimulado, quase apresentado, quase sorridente, um tipo cheio de metades e quase, com um nariz enjambrado no rosto meio chupado. Uma figura que carecia de olhar, que é como carecer de alma.Tinha asas, era impulsivo, mas faltou-lhe força para voar alto e perder-se livremente no imenso céu do desejo.Suas orações, sempre serenas, pareciam duvidar das coisas do além.A floresta: é sobrevoar, admirar, assombrar-se e desistir.Nenhum passado é anônimo.A vida vai andando em linha reta, de repente dá uma cambalhota, a linha dá um nó sem ponta."O comércio é antes de tudo uma troca de palavras".(...) o tempo que faz uma pessoa se tornar humilde, cínica ou cética.As asas finas de um saracuá, o pássaro mais belo, empoleirado num galho de verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe tinham servido os outros.Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras (...).Notei no seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver. Mas quando Zana procurou minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido...O futuro, essa falácia que persiste.
18/01/2015
O evangelho segundo Jesus Cristo: "malga"
O blog começa retardatário em relação ao Instagram. Um dos objetivos, de partida, será publicar uma postagem aqui para cada uma das que já estão lá. Começo com José Saramago, seu Evangelho segundo Jesus Cristo e a palavra "malga".
(O lugar do blogueiro: esta postagem foi feita nesse cenário)
Não me lembro de nenhum outro livro ter-me transformado em um carrinho em trilho de montanha-russa e feito minhas emoções oscilarem tão intensamente e tantas vezes do riso às lágrimas.
Deve fazer uns quinze anos que li, pela primeira vez, um livro do único ganhador do prêmio Nobel de Literatura a escrever em português, José Saramago. Foi uma edição de banca de revista do Jangada de Pedra, a capa dura, o papel meio grosseiro, tipo de jornal. Integrava a coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa". De lá para cá, Saramago tornou-se um de meus autores prediletos. Até o presente, Ensaio sobre a cegueira, que virou filme sob a direção do brasileiro Fernando Meirelles, era meu preferido, seguido, de perto, de Todos os nomes. O evangelho, cuja leitura eu adiava havia anos, furou a fila e agora está na dianteira. Entrou também na lista de meus dez livros mais amados.
(alguns livros da coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa" em minha estante)
(livros de Saramago aqui à mão)
Que novidade poderia haver em uma história contada e recontada há dois mil e quinze anos? Quantas filmagens e encenações da Paixão de Cristo vocês não já viram, no todo ou em parte, ao longo da vida? O elemento surpresa, atrativo de muitas narrativas, dificilmente estaria presente: todo mundo sabe que a personagem principal dessa história morrerá crucificada, depois de vividos alguns episódios sem muita carga dramática, exceto por um milagre aqui ou ali, em que ninguém acha graça.
Quem já refletiu um pouco mais sobre literatura e sobre a arte de contar histórias deve ter chegado à conclusão de que o fascínio de uma narrativa não está na exposição do milagre em si, mas, na verdade, em mostrar como foi feito, quais foram suas causas e quais serão as consequências. Lembram-se da grande audiência que Mr. M deu ao Fantástico? A diferença do evangelho de Saramago está no como, nas ênfases em determinados episódios e no recheio que ele usou, para preencher as lacunas da história celebrizada com a disseminação do cristianismo. Exemplificar bem isso me levaria, inevitavelmente, a estragar algumas surpresas, porque as há. Conforme eu disse, os pontos-chave da biografia bíblica de Jesus repetem-se, mas os imprevistos estão em como são encadeados.
Preciso usar um parágrafo para advertir aqueles que levam a religião muito a sério de que Saramago, ao recontar a história de Jesus, não adotou a mesma reverência que talvez vocês esperassem. Deus, o Diabo, Jesus, Maria de Nazaré, José, Maria de Magdala e outras personagens que entrariam na hagiografia católica misturam-se, convivem, e não estão caracterizados com as qualidades morais que se poderia prever. O Jesus de Saramago é de uma humanidade pungente em seu esforço sincero e angustiado de ser bom, é um herói; o Diabo do livro é um humanista pragmático e não deixa de contar com nossa simpatia; quanto a Deus, bem, sinto dizer que é o maior vilão dessa trama. Uma leitura atenta do romance deve desafiar crenças e contestar paradigmas. Conhecer bem a história bíblica tanto pode tornar a leitura mais instigante, como pode ferir susceptibilidades. Fica o aviso.
Se lerem, prestem atenção (aos que já leram, tentem lembrar) a como Saramago agrupa, em torno de Jesus, sempre pares de personagens que podem ser bem medidos um em relação ao outro. Por exemplo, Maria de Nazaré, a mãe, e Maria de Magdala (ou Madalena), a companheira: a primeira virtuosa, casada, mãe, exemplar segundo as leis oficiais e divinas, mas falha no reconhecimento do filho; a segunda, prostituta, impura ante os olhos da comunidade, mas de uma compreensão e comunhão divinas com Jesus. Uma das cenas mais comoventes do Evangelho é o primeiro encontro entre as duas, depois de tempos de preparação, durante os quais uma ouvia falar da outra, unidas pelo vínculo afetivo com Jesus. Outros pares: Deus, o pai celeste, e José, o pai de carne e osso; Tiago, o irmão que assume as responsabilidades de Jesus como primogênito da casa, e José, o irmão afetuoso; Deus e o Diabo, claro. Cada par desses renderia um texto inteiro de análise. Se quiserem, posso fazer.
Como eu vou agora, depois de tudo que ficou dito, incluir a "malga" nesta conversa? Para que não precisem correr à primeira postagem do Palavra de Literatura no Instagram, recupero aqui tanto o trecho do Evangelho em que a palavra apareceu, quanto a definição retirada do Houaiss:
"A mãe tinha acabado de preparar a ceia, sentaram-se todos à volta da MALGA comum e comeram do que havia."
malga substantivo feminino ( 1510)tigela ou prato fundo de louça em que se toma sopa, caldo
(Nessa pintura do português José Malhoa, uma malga é emborcada sobre a mesa por um bêbado)
Aqui vai aparecer um spoiler, portanto, se você, em uma história, dá mais importância ao quê do que ao como, pule para o parágrafo seguinte. A ceia mencionada no excerto que pincei é carregada de emoção. José não está presente. O homem da casa, marido de Maria, pai de Jesus e de seus irmãos, não apenas respeitado pela sua posição hierárquica naquela sociedade patriarcal, mas também amado por suas qualidades pessoais, morreu. Não digo como, porque é uma das surpresas do livro. Será a primeira refeição da família após a morte de José, todos estão profundamente tristes, todos têm a garganta atada por um nó cego, todos, exceto os muito miúdos - pelas óbvias razões -, pensam nas incertezas do amanhã, provavelmente todos estão sem fome, mas a ceia conjunta é o primeiro passo dessa família para o futuro em direção ao qual os vivos necessitam caminhar. Ato corriqueiro, comezinho, banal, repetitivo, essa ceia deverá ser inesquecível. No centro da cena, a malga, uma grande tigela para a qual convergem as mãos da família sentada em redor do objeto, receptáculo do alimento compartilhado.
Seria espantoso, se eu revelasse que "malga" vem do grego? Assim como eu gosto de histórias de pessoas, também me apetecem as das palavras. Resgatar detalhadamente o percurso de "malga" do grego antigo até a flor do Lácio que falamos no Brasil não caberia neste texto, exigiria um exclusivo. Deixem-me apenas registrar a curiosidade de que, na origem antiga, a palavra era magís (μαγίς) e designava: a) uma massa de pão, b) um pão de mel oferecido no altar de Trofônio, c) mesa ou d) o prato de uma balança. Ao que parece, o percurso do sentido carregado pela palavra girou sempre em torno da relação metonímica entre o alimento e seu recipiente. Cada significado etimológico desses renderia ótimos ganchos analíticos para a leitura do Evangelho.
Os livros e as histórias neles contidas comparam-se à malga: nós metemos as mãos em suas páginas, os olhos, em suas palavras, a mente, em suas personagens, imaginação, em tudo que acontece e é narrado neles. Isso alimenta-nos e faz-nos comungar com outras pessoas, inclusive, as que já morreram e, num passado em que não vivemos, leram, emocionaram-se e viram o mundo semelhantemente a nós, por haverem conhecido as mesmas histórias.
Eu desejo que este blog seja como a malga, e todos nós tanto depositemos nele quanto retiremos dele alimento para nosso cotidiano.
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