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27/06/2015

"Getúlio 1930-1945": aula de biografia na forma, aula de política no conteúdo.


Há quase dez dias, terminei de ler Getúlio 1930-1945: Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo, segundo livro da trilogia biográfica publicada recentemente pela Companhia das Letras, com autoria de Lira Neto. Fiquei muito empolgado com a leitura do primeiro volume, o que reforçou minha vontade de percorrer não apenas os outros dois sobre Getúlio, mas também aqueles sobre Padre Cícero e sobre José de Alencar (um amigo que me dá dicas de leitura valiosíssimas adorou a biografia de Alencar e recomendou-a faz tempo).  O Getúlio #2, recém-terminado, não foi tão instigante quanto o #1, porém, com isso, não quero dizer que não seja um livro excelente, que merece ser lido por quem gosta de história e de biografias.
Como indicado no título, o segundo volume conta a vida e o contexto histórico do Presidente Getúlio Vargas, desde que conquistou o poder por meio de um golpe, com a ajuda fundamental de forças militares, até que foi retirado da mesma posição, também pela intervenção essencial de forças militares. Lira Neto expõe com que estratégias, talentos e ardis Vargas se equilibrou em uma corda-bamba instável, para manter-se no posto presidencial. Como em qualquer biografia, em que estão em foco, eminentemente, os atos - as decisões - do biografado, é difícil não fazer constantemente juízos sobre Getúlio. 
Eu diria que Lira Neto tem uma opinião mais positiva do que negativa do objeto de sua pesquisa, o que é legítimo. Imparcialidade não se alcança aqui, muito menos na China. As contradições de Getúlio, as ambiguidades, os vaivéns nas alianças estão lá no texto, mas também estão elementos que poderiam justificar, a critério de quem o lê, cada caminho adotado. Notei que muitas justificativas ou interpretações positivas sobre a conduta de Getúlio são calçadas no depoimento de Alzira Vargas, a filha dileta do ex-Presidente, e nos diários que este manteve até quase o final de sua primeira estada no poder. No geral, o equilíbrio é muito adequado entre a exposição do que poderiam ser consideradas canalhices e trapassas e suas motivações, seja no âmbito do pragmatismo, seja no das limitações e dos equívocos pessoais, mesmo que bem-intencionados. De qualquer forma, Getúlio estava cercado de raposas, de egos, de lideranças mais ou menos reconhecidas que, à sua maneira, buscavam cavar espaço e prestígio para os interesses que representavam, inclusive, os mais pessoais: caso de José Américo de Almeida, de Góes Monteiro, de Eurico Gaspar Dutra, de Oswaldo Aranha etc.

"Dotado de hábil pragmatismo e de impressionante paciência histórica, preferia deixar suas opções políticas sempre em aberto, na expectativa de que o tempo oferecesse a oportunidade propícia para deliberações mais seguras ou até mesmo para futuras conciliações, por mais improváveis que estas aparentassem ser no momento." (pos. Kindle 288)

Getúlio Vargas detinha um tino político fora do comum. Foram 15 anos de permanência na chefia do Executivo. De 1930 a 1945, todos os aliados que ajudaram a alçá-lo à cadeira presidencial, na Revolução de 1930, saíram de cena, ou foram eclipsados, sempre que Getúlio pôde fazê-lo. Na gangorra entre aqueles que defendiam a democracia liberal e os outros que se opunham a esta como um sistema vicioso e corrupto, com referência ao período da República Velha, Vargas acenava, sugeria compromissos que não cumpria, e, no fim das contas, promoveu o que ficou conhecido como modernização conservadora da sociedade brasileira. Houve avanços trabalhistas significativos, a indústria ganhou robustez. Ironicamente, foi introduzida uma legislação eleitoral mais avançada, sob a supervisão de um tribunal próprio, porém Getúlio, supostamente por considerar que a sociedade estava imatura para eleições diretas, não a pôs em prática.

"Durante os dez dias que passou no Rio Grande do Sul, Aranha cumpriu uma extenuante maratona de compromissos políticos. Trancafiou-se com Pilla em uma reunião de mais de seis horas em Porto Alegre. Tomou um trem noturno para ir a Cachoeira conversar com Borges de Medeiros e João Neves. Voou em um pequeno Farman-Salmson de apenas dois lugares - um para o piloto, outro para o passageiro - e aterrissou em Pelotas, no aeroporto mais próximo de Pedras Altas, para uma conferência com Assis Brasil. Além disso, participou de almoços e jantares com lideranças empresariais, autoridades militares e representantes de sindicatos. Ouviu muito, falou mais ainda." (loc. Kindle 935)

A política em períodos de fragilidade constitucional, quando a unidade e o consenso nacionais são frágeis, apresenta semelhança interessante com os processos de articulação diplomática. Mesmo tendo chegado ao poder pela força, Getúlio é obrigado a negociar apoios e, para isso, envia seu Ministro Oswaldo Aranha ao Rio Grande do Sul, no intuito de arrefecer ânimos e de recuperar o apoio de sua base regional, sem a qual jamais chegaria ao comando do país. Trata-se de ponto crucial entre a passagem de Getúlio de liderança com legitimidade e com compromissos oligárquicos regionais para a situação posterior, em que sua figura pública desprende-se, em grande medida, da identidade gaúcha e passa a ser associada à brasileira. A missão de Oswaldo Aranha, mencionada na citação logo acima, assemelha-se bastante a uma missão diplomática ao exterior, quando se busca a adesão de soberanias - leia-se "países independentes" - a determinada tese, projeto ou valor. Coincidência ou não, Aranha depois seria Ministro das Relações Exteriores de reconhecido talento.
A história desses quinze anos abrange também a guerra civil de 1932, que os paulistas chamam de Revolução Constitucionalista, a Intentona Comunista, o golpe dentro do do golpe, em 1937, a barganha com os Estados Unidos pelo apoio brasileiro no contexto da Segunda Guerra Mundial e a queda de Getúlio. Além disso, há a desilusão amorosa de Vargas pelo abandono por sua amante e a interessante e saborosa relação entre o Presidente e Alzira, sua filha mais próxima, uma mulher que se enxeriu em ambiente predominantemente masculino e conquistou a confiança e a admiração do pai, como confidente e como conselheira. Como mencionei, o depoimento de Alzira em livro foi essencial para a reconstituição operada por Lira Neto.

"Pela primeira vez na história do país, um líder político buscou sua legitimação no povo, o que ajudou a cristalizar sua figura, no imaginário popular, como um aliado preferencial dos mais pobres e humildes. Ao mesmo tempo, a proibição de greves e a repressão brutal a comunistas e anarquistas minimizaram de modo progressivo a resistência histórica das organizações patronais e das elites, que também foram convocadas a se aproximar do aparelho estatal, como parcela indissolúvel de sua estrutura burocrática." (loc. Kindle 10133)

O jornalista cearense Lira Neto, talento consagrado do gênero biográfico no Brasil.


Por último, destaco, porque me interesso particularmente pelo processo de construção de biografias, o post-scriptum do autor sobre a criação de Getúlio #2. Lira Neto explica que, enquanto o desafio do primeiro volume era recuperar informações pouco conhecidas sobre a vida de Vargas antes da chegada à Presidência, a dificuldade do segundo era lidar com a caudal de informações e de estudos disponíveis acerca de um dos períodos mais pesquisados da história política brasileira. Talvez por isso, como mencionei em postagem anterior e na introdução a este texto, instigou-me mais a narrativa de Getúlio #1.

"Meu propósito, como biógrafo, foi articular o vasto pano de fundo com os aspectos da vida privada do biografado, sobrepondo cotidiano e contexto histórico, para tentar compreender de que forma essas duas dimensões interagiram e sofreram influências mútuas." (loc. Kindle 10164)

"A partir do mapeamento prévio do material depositado no CPDOC, confrontaram-se as informações obtidas nos registros particulares do biografado com a extensa bibliografia disponível (…). Mais de duas dezenas de outros arquivos foram igualmente pesquisados, no Brasil e no exterior, para compor o mosaico de dados. A leitura de periódicos de época, das mais diversas procedências e tendências políticas, contribuiu para conferir à narrativa certa polifonia de vozes, produzida pelos repórteres e analistas que então escreviam e interpretavam a história em tempo real. Charges, caricaturas, canções populares, panfletos, inquéritos policiais, filmes, fotografias e gravuras também ampararam a recomposição de época." (loc. Kindle 10175)

10/06/2015

"Getúlio (1930-1945): do Governo provisório à ditadura do Estado Novo" - notas de leitura

Minha agenda de postagens do blog degringolou. Sempre que penso em retomar as publicações, acontece-me algo que transcende as forças de minha vontade publicadora. Decidi comentar despretensiosamente minhas leituras em curso, para tentar retomar o hábito, inclusive, dos diários de leitura.

***

Já faz algum tempo, estou lendo o segundo volume da biografia de Getúlio Vargas escrita por Lira Neto. Comentei aqui no blog o primeiro livro dessa trilogia. Fiquei realmente capturado pelo talento de Lira Neto, que vem sendo comprovado e aprimorado na sucessão de trabalhos biográficos que ele lança. O cara poderia fazer uma pesquisa minuciosa e exaustiva, mas ter um estilo desinteressante. Mesmo que conjugasse pesquisa diligente e prosa atraente, poderia ter problemas para estruturar o oceano de informações reunidas, de modo que não apenas reforçassem teses e interpretações pertinentes sobre a vida e sobre o contexto histórico do biografado, mas também gerassem no leitor aquela tensão dramática e a afeição típica de narrativas ficcionais. Lira Neto faz tudo isso com maestria, e eu espero que continue dando à luz obras do gênero, que me tem interessado crescentemente.

Ainda sobre a biografia de Getúlio Vargas, é instrutivo acompanhar as artimanhas políticas, as articulações tortuosas, a espera tática e os vaivéns de aliados orquestrados pelo Chefe de Estado mais longevo da história republicana brasileira e o segundo de todos os tempos, atrás apenas do monarca Pedro II. Não há como resistir à presença da personalidade de Getúlio como marco e cicatriz de nossa biografia nacional. Os ecos das tensões políticas que ele tentou equilibrar continuam reverberando nas disputas que se travam atualmente em nossa sociedade. Identificar os padrões daquela época, tão bem reconstruídos por Lira Neto, é instrutivo e útil para participar e interpretar a realidade em marcha.

Por ora, achei mais vibrante e envolvente a leitura do primeiro volume, porque remonta a fases menos difundidas da carreira política do biografado. A passagem de uma liderança local e regional para o âmbito nacional pareceu-me particularmente interessante, em uma época de forças centrípetas prevalecendo na organização do Estado brasileiro. A tentativa de identificar, nos anos de formação, padrões e razões que ajudariam a entender o homem de Estado também estão entre os elementos que aumentam minha predileção pelo volume de abertura, o que, no entanto, não significa que o atual seja prescindível.

06/03/2015

Diário de Leitura: "O Anjo Pornográfico" - parte final.

Lendo as últimas páginas da biografia de Nelson Rodrigues, com café, brownie e livros recém-comprados.

Estou imbuído da difícil missão de produzir o último texto sobre O Anjo Pornográfico. Como um princípio fundamental deste blog é escrever, custe o que custar, estou começando a dar forma à postagem final do diário de leitura da biografia de Nelson Rodrigues, sem antever um plano geral. Passei uma vista no que escrevi antes sobre o livro e tentarei guiar-me pelo que prometi: analisá-lo à luz das razões e das expectativas que me levaram a incluí-lo na lista de 2015.

26/02/2015

Diário de Leitura: "O Anjo Pornográfico" - parte 4

Não registrei ainda meu espanto, ao ler na biografia que, com 21 anos, todos os dentes de Nelson Rodrigues foram extraídos, e, em seu lugar, uma dentadura passou a cumprir as funções de cortar, rasgar e moer. O motivo? Tinha uma febre persistente, mas as radiografias dos pulmões não confirmavam o diagnóstico mais provável: tuberculose. Para tentar descobrir o foco infeccioso que originava a febre, em uma época em que a estreptomicina não estava disponível no mercado a fim de atacar as bactérias via corrente sanguínea, era comum debastarem caninos, molares e incisivos, corriqueiros acoitadores de infecções. Logo depois, a tuberculose deu as caras em forma de manchas pulmonares nas chapas de raio-x.

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A gente ouve falar em Oswald de Andrade quando estuda a Semana de 1922 e depois nunca mais. Fiquei surpreso ao saber que o vanguardista Oswald estava vivo na década de 1950, apesar de "desdentado, falido e doente". Qual não foi minha supresa ainda maior, quando li que o debochado incendiário Oswald de Andrade chegou a defender, em coluna de jornal, a criação de uma "'polícia literária' que impedisse a obra de Nelson de passar de um 'folhetim de jornalão de quinta classe'". De Cecília Meireles e Nelson Rodrigues, chegou a dizer que eram "autores de livros analfabetos, que nunca deveriam ter sido escritos". O guerreiro de 1922, segundo Ruy Castro, ansiava por uma polêmica com Nelson, que não entrou na onda. A história está cheia de exemplos de gente que se contradiz assim: uma hora é visionária, outra hora, grosseiramente cega. Um de meus maiores medos é protagonizar na vida uma incoerência gigante como essa.

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O jornal do pai de Nelson Rodrigues foi empastelado na Revolução de 1930, porque era intimamente ligado ao grupo político deposto, representado pelo paulista Washington Luís. Em meados da década de 1950, a família Rodrigues conseguiu na Justiça o direito a uma indenização pela perda. Os filhos comparam um apartamento para a mãe viúva e dividiram o restante da bolada. As leitoras e eu provavelmente investiríamos esse dinheiro para gerar renda e, com alguma perícia, ampliá-lo. Stella Rodrigues, a irmã médica de Nelson, resolveu usar sua cota para adaptar para o teatro um romance que publicara em 1945 e montar o espetáculo. Na melhor tradição familiar, não apenas gastou seu dinheiro, como também se envolveu em polêmica com seus colegas de profissão, alvos das críticas de Tire a máscara, doutor!

24/02/2015

Diário de leitura: "O Anjo Pornográfico" - parte 2

Como eu mencionei na postagem anterior deste diário de leitura, depois do primeiro terço de O Anjo Pornográfico o narrador deixa, aos poucos, a vida de Nelson no período de formação e no contexto familiar e volta-se para aquele em que ele é efetivamente o protagonista da história. Os primeiros eventos dignos de nota são o casamento de Nelson Rodrigues com Elza e sua estreia como dramaturgo, primeiramente com a montagem de A Mulher sem pecado e, mais emocionante e épica, a de Vestido de noiva.

O casamento e o início da carreira dramatúrgica são entrelaçadas na narrativa de Ruy Castro. Nelson casa com Elza e contra a sogra, que o considerava um partido ruim para a filha. Ganhava pouco e morava longe, como se diria atualmente. Andava desleixado e não inspirava um futuro promissor em termos de conforto material talvez nem para ele mesmo. Além de tudo isso, tinha um histórico de tuberculose persistente, em uma época em que o tratamento da doença era, a bem dizer, um jogo de sorte. Consumado o matrimônio, o futuro célebre escritor resolveu escrever peças como forma de aumentar a renda:

Estava passando pela porta do Teatro Rival, na Cinelândia, onde uma fila se atropelava para ver Jaime Costa em "A família Lero-lero", de R. Magalhães Jr. Nelson ouviu alguém comentar: 
"Essa chanchada está rendendo os tubos!" 
Por que não escrever teatro? Não lhe parecia mais difícil do que escrever um romance. Pelo menos, era mais rápido. Com os dedos salivando, Nelson resolveu tentar." 
Atentem para "os dedos salivando", mais uma amostra do talento de prosador de Ruy Castro. Atentem também para o momento marcante na gênese do escritor Nelson Rodrigues. Quem, como eu, interessa-se pelo mundo da literatura - mas especialmente quem deseja tornar-se um escritor - deve achar particular interesse em como se cria um escritor consagrado, em como ele resolve e conclui que se dedicará ao métier. Cada um poderá ter suas motivações, e nós tendemos a idealizá-las. No caso de Nelson, uniu-se a prática da escrita por meio do jornalismo com a necessidade de complementar a renda. Ele vislumbrou a aplicação à produção artística, para fins pecuniários, de um talento aprimorado com o exercício diário nos jornais.

Escrever todo mundo escreve, naquela época como hoje. Eu estou escrevendo, por exemplo. Outra coisa é ser lido. Outra ainda mais difícil é ganhar dinheiro com isso. Minha já arrojada ambição restringe-se ao segundo passo da mencionada escala, mas não era o caso de Nelson Rodrigues. Ele distribuiu suas peças para leitura de medalhões da literatura e da crítica nacionais, como Manuel Bandeira, pediu que escrevessem opinião, de preferência favorável, a respeito delas, bem como usou suas amizades nos meios jornalístico e político, para viabilizar a montagem e alcançar o público. Mutatis mutandis, como os blogueiros e instagrameiros da atualidade trocam curtidas, indicações e divulgações de forma geral.

22/02/2015

Diário de leitura: O Anjo Pornográfico

Comecei a ler, há aproximadamente uma semana, O Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro. O biógrafo tem uma prosa bem marcante, que mescla certo tom informal com palavras pouco comuns, mas expressivas. O resultado é ótimo. Tive contato com esse estilo famoso de Ruy Castro no ano passado, quando li Era no tempo do Rei, um romancezinho despretensioso que me pareceu ter toda a pinta de infanto-juvenil, mas não deixou de me impressionar pelo aspecto da escrita em si. 
Estou entre o primeiro quarto e o primeiro terço da biografia e posso dizer que a combinação da prosa de Ruy com sua pesquisa bem feita e com suas escolhas sobre o que era relevante aparecer na obra rendeu um ótimo resultado, muito melhor do que o obtido por ele no romance lido no ano passado por mim. 
Castro ficou famoso por suas biografias de Nelson Rodrigues, de Garrincha e de Carmen Miranda, além de outros títulos de crônicas. Creio que, ao lado de Fernando Morais, autor de Olga e de Chatô: o Rei do Brasil, bem como de Lira Neto, que trouxe à luz biografias do Padre Cícero, de Maysa e, em três volumes, de Getúlio Vargas, Ruy Castro é o maior biógrafo da atualidade no mercado editorial brasileiro. O Anjo Pornográfico, lançado em 1992, foi o primeiro de seus livros nesse gênero.
A intenção do autor, conforme anunciada na "Introdução", não é a crítica ou a análise das obras de Nelson Rodrigues, mas eminentemente factual: seu intuito é narrar, segundo suas palavras, "onde, quando, como e por que". As iscas que ele inseriu na seção introdutória, como que para vender o peixe do livro, são eloquentes: "O Anjo Pornográfico é a espantosa vida de um homem - um escritor a quem uma espécie de ímã demoníaco (o acaso, o destino, o que for) estava sempre arrastando para uma realidade ainda mais dramática do que a que ele punha sobre o papel." Aí se tem uma amostra da prosa de Ruy, com essa ótima expressão "ímã demoníaco". Ademais, quem tem alguma noção do que é a obra de Nelson Rodrigues - quase todo mundo tem - fica curiosíssimo por saber como a vida dele pode superar sua obra em dramaticidade.
No passo em que me encontro, o livro está transitando da fase em que se conta a vida de Nelson no contexto familiar para aquela que será centrada, imagino, propriamente nele. A narrativa começa no Recife, onde nasceu o biografado, passa pela mudança da família Rodrigues para o Rio de Janeiro e segue pelos altos e baixos deles no período de formação de Nelson. Nota-se que Ruy Castro aponta, aqui e ali, possíveis fontes para a ficção rodriguesiana, marcada por traições, bebedeiras, mortes apoteóticas e loucuras.
Uma personagem que chamou particularmente minha atenção, nesse quase primeiro terço de livro, foi Sylvia Seraphim, uma mulher estonteantemente bonita, colaboradora de jornais da época e amiga de intelectuais, algo ainda incomum então. O desquite de Sylvia foi noticiado de forma sensacionalista pelo jornal de Mário Rodrigues, pai de Nelson, apesar dos apelos reiterados para que deixassem esse assunto privado fora das páginas do diário. As consequências foram catastróficas, e aqui eu fico, para vocês não me acusarem de estragar um dos baratos da biografia.
Uma coisa bacana das boas biografias é que elas logicamente não informam apenas da vida da personagem-título. Para permitir que essa seja entendida, vêm a reboque as de outras personagens relevantes, afora elementos de história e de tudo quanto possa lançar luz sobre o biografado. O Anjo Pornográfico também trata, por exemplo, de Mário Rodrigues Filho, irmão de Nelson e grande pioneiro da crônica esportiva nacional, cujo prestígio redundou na escolha de seu nome para o mundialmente famoso estádio do Maracanã. Outro irmão de Nelson, Roberto, ilustrador e artista plástico que viveu muito pouco para deixar uma obra mais marcante, teve um filho, morto em 2014, que seria um dos maiores designers do Brasil.
Incluí O Anjo Pornográfico na meta de leituras de 2015 por duas razões principais. Em primeiro lugar, estou interessado no gênero biográfico e considero que preciso me encharcar dele, para absorver sua forma. Em segundo lugar, se elegi a prioridade de ler biografias, tanto melhor que sejam sobre pessoas que foram protagonistas em áreas que me interessam primordialmente. No caso de agora, o mundo da literatura. Voltarei mais tarde a essas duas intenções geradoras da presente leitura, mas adianto que o livro de Ruy Castro tem cumprido muito bem a destinação que lhe dei, além de deleitar-me com seu ímã demoníaco.

(O trecho lido no vídeo acima refere-se ao caso de Sylvia Seraphim)

(Sobre o abandono dos estudos por Nelson Rodrigues)

(O pai de Nelson Rodrigues começou como jornalista e terminou com proprietário de jornal. Uma das seções que certamente serviram de inspiração para a obra do biografado foi a policial.)

(Ruy Castro especula sobre a influência da vida na primeira vizinhança dos Rodrigues no Rio de Janeiro sobre a mente de Nelson)

(Logo que os Rodrigues chegam ao Rio, a cidade é assolada pela epidemia da gripe espanhola)

17/02/2015

Rapidinha (de Carnaval) 2

Conforme programado, talvez com um pouco de atraso, terminei a leitura meio obrigatória de História das Relações Internacionais Contemporâneas, que estabeleci como condição para iniciar O Anjo Pornográfico. No meio do caminho, porém, tinha uma ida à livraria, de onde saí, no sábado de Carnaval, com os três livros que postei no Instagram. Comecei a ler Literatura Brasileira: modos de usar, do professor da UFRGS Luís Augusto Fischer, ainda no shopping onde o comprei, e terminei-o só um pouco depois do de Relações Internacionais. 


Vim só dar notícias, dizer que atribuí quatro estrelas ao livrinho de Fischer - que será objeto de postagem própria - e consignar minha alegria de começar a virar as páginas da biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, com grandes expectativas.

07/02/2015

Metas de leitura de 2015: "O anjo pornográfico"



Está na agulha, para leitura ainda este mês, a primeira biografia que lerei no ano, de Ruy Castro, mestre do gênero no Brasil. Trata-se de O anjo pornográfico, publicação da editora Companhia das Letras. Lembram que, na postagem sobre Dois irmãos, mencionei um clube de leitura formado com amigos meus do trabalho? Pois, decidimos encarar a biografia de Nelson Rodrigues. De Ruy Castro, há também as famosas e elogiadas biografias que tomaram por objeto as vidas de Carmem Miranda e de Garrincha.

Estou particularmente interessado pelo gênero "biografia", porque ando com a coceira de escrever uma. Botei na cabeça, por isso, que deveria ler o máximo delas que pudesse, prestando especial atenção à construção, à forma, à organização das informações sobre a vida do biografado, às escolhas do autor sobre o que foi relevante vir a público. Uma de minhas intenções primordiais, com essa leitura, é assimilar a forma. A escolha do grupo veio ao encontro de um de meus projetos.

Pelo fato de tratar da vida de um escritor e provavelmente incluir, por isso, informações sobre o mundo literário da época, com a presença de outros escritores, de intelectuais, de jornalistas e de figuras dos bastidores da cena editorial, nutro a expectativa de também ter acesso a informações históricas de particular interesse para mim, que curto literatura e gosto de escrever. Espero, por exemplo, saber como Nelson Rodrigues publicou seu primeiro livro, se sua inclinação para a escrita surgiu desde cedo, se foi espontânea ou estimulada, se teve crises de criatividade, como encarou eventuais insucessos de público ou de crítica etc.

(Minha edição autografada pelo autor na Bienal do Livro de Brasília em 2014)

Conforme prometi na postagem sobre as metas de leitura para 2015, compartilhei um pouco dos critérios que usei para fazer minhas escolhas de leitura deste ano e transmiti algumas informações elementares sobre o livro que foram importantes para a seleção. Aos poucos, farei o mesmo com os outros títulos da lista deste ano. Igualmente, quando terminar as leituras, voltarei com minhas impressões, com a confirmação ou com a rejeição de minhas expectativas quanto a elas, com informações mais detalhadas que permitam vocês decidirem se vale a pena incluir em suas listas e com minha avaliação geral de 1 a 5 estrelas.