25/02/2015

Oliver Sacks ensina a ler

Hoje quero tratar de leitura sim, mas entendida amplamente. De uma forma bem óbvia, o ato de ler é ininterrupto enquanto estamos em vigília, e haverá até quem diga que, durante o sono, continua. Não me refiro à decodificação de um sistema de escrita, como bem já entenderam leitoras mais sagazes. Toda nossa relação com o mundo é mediada por interpretação, por decodificação, por leitura: de texto escrito, de fisionomias, de um jogo de futebol, do mapa de uma cidade. Não nos cansemos na tentativa de exaurir as possibilidades desse rol. O que me motivou a escrever sobre isso foi uma espécie de carta que o escritor e cientista Oliver Sacks publicou no New York Times com um balanço da própria vida, após descobrir-se portador de um câncer em estado terminal.
Lembro como os títulos de Oliver Sacks chamavam-me a atenção, na década de 1990, quando comecei a frequentar livrarias por iniciativa própria e a consumir horas a fio correndo os olhos por cada lombada de livro nas prateleiras. As edições nacionais, saídas pela Companhia das Letras, tinham cintilantes capas coloridas, com uma sobrecapa em plástico relativamente rígido, transparente em grande medida, com título e nome do autor em letras brancas. O interesse que me despertavam essas obras sempre existiu e persiste, mas nunca foi suficiente para me mobilizar para a leitura efetiva. Pouco tempo depois, comecei a cursar Medicina, provavelmente por isso deixei de lado a ideia de conhecer as histórias de Oliver Sacks sobre pacientes e condições neurológicas. Explico-me: naquela época, eu preferia matar minha vontade de ler com assuntos distintos daqueles que me ocupavam na faculdade. 

Livros de Oliver Sacks, inclusive, em edições da Companhia de Bolso, mais em conta.


Os livros de Sacks que eu nunca li são encimados por títulos instigantes, sinestésicos, que rompem com o automatismo da linguagem corrente: Vendo vozes, Alucinações musicais, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Um antropólogo em Marte e por aí vai. Por resenhas e comentários que li ao longo dos anos, sei que o autor pinça casos emblemáticos de sua lida profissional e, a partir deles, discute assuntos menos ligados à ciência dura e mais à Filosofia e às humanidades.
Em 19 de fevereiro passado, em pleno Carnaval, tempo de viver como se não houvesse amanhã, foi publicado o texto de Sacks que mencionei no primeiro parágrafo, intitulado "My own life" (Minha própria vida). Comovente, fez-me pensar de um jeito mais agudo sobre nossa finitude e sobre como a consciência e a iminência dessa condição são cruciais para nossa abordagem da existência. Tratei disso na postagem sobre o poema "Consoada", de Manuel Bandeira, quando comparei a atitude do eu poético, que mantém sua rotina comezinha malgrado a expectativa da morte, com a letra da música de Paulinho Moska que questiona "o que você faria se só lhe restasse um dia?"
Um livro que me marcou bastante e, pasmem, trata de juros, mas de uma maneira intuitiva e humana, foi O valor do amanhã, de Eduardo Gianetti da Fonseca. Para quem não lembra, ele era o principal nome econômico da campanha da presidenciável Marina Silva. Desde que o li, sempre me ocorreu uma formulação que provavelmente não é de Gianetti, porém chegou-me por meio de sua pena: o ser humano de racionalidade média pauta sua vida de acordo com a certeza de que morrerá e com a dúvida quanto ao tempo que o separa de seu fim. Morreremos, mas ignoramos quando, e, devo concordar com o autor, o modo como lemos esse dilema entre uma certeza e uma dúvida interligadas condiciona essencialmente nosso viver.

O valor do amanhã foi lançado também em edição econômica.

Com seus 81 anos e com a consciência aguçada, Oliver Sacks certamente já recebia acenos da morte de modo mais vivo, com o perdão da antítese. Por exemplo, como diz no texto do New York Times, testemunhara o falecimento de muitos de sua geração. Extintos seus avós e seus pais do mundo exterior à memória, qualquer ente humano começa a encarar a morte paulatinamente mais olho-no-olho, pois deixa de contar com as talvez ilusórias fileiras protetoras das gerações mais velhas, que, por natureza, esperamos que desapareçam antes de nós. Mesmo assim, o impacto resultante da notícia que tornou mais iminente sua morte foi sentido por Sacks e provocou o balanço ou a releitura de seus dias.
Quantos livros você pretende ler no ano? Quão ligeira e superficial ou detida e atenta será a leitura que você fará de cada livro? Do livro que você precisa ler para o Mestrado e daquele que degusta sem obrigação? Como dividirá sua atenção entre ficção comercial e obras de arte literária? Se tivesse certeza de que morreria amanhã, leria alguma linha? De qual livro? Assim como a interpretação de uma obra escrita envolve antecipações, mudanças de expectativas, retorno a trechos passados, saltos ou visadas mais ligeiras, a leitura do tempo também. De uma leitura maior, a de nosso tempo sobre a Terra, dependem todas as demais que fazemos, a dos livros, inclusive. No penúltimo parágrafo de seu texto de balanço, Sacks surpreendeu-me e, ao mesmo tempo, cativou-me, ao colocar sua experiência como escritor e com leitores entre os ápices da vida que levou: 


"I have read and traveled and thought and written. I have had an intercourse with the world, the special intercourse of writers and readers."

("Eu li e viajei e pensei e escrevi. Mantive intercurso com o mundo, o especial intercurso de escritores e leitores.")
O sentimento de gratidão que Oliver Sacks confessa predominar em seu espírito atualmente, eu dirijo a ele, por ter compartilhado conosco sua experiência intimamente dolorosa e excruciante, imagino eu. No diálogo platônico Fédon, Sócrates, à espera da execução de sua sentença fatal, define a Filosofia como o aprendizado para a morte. Não deve haver matéria mais difícil no currículo humano. O texto de Sacks ajuda a aprender. Espero que termine seus dias fazendo felizes as pessoas que lhe são mais próximas e também se sentindo feliz. Sou capaz de apostar que, nos sagrados dias que lhe restam, ele estará lendo.

"A morte de Sócrates", de Jacques-Louis David.

2 comentários:

  1. Adorei isso. Muito interessantes suas colocações.

    ResponderExcluir
  2. "Com seus 81 anos e com a consciência aguçada, Oliver Sacks certamente já recebia acenos da morte de modo mais vivo, com o perdão da antítese. Por exemplo, como diz no texto do New York Times, testemunhara o falecimento de muitos de sua geração. Extintos seus avós e seus pais do mundo exterior à memória, qualquer ente humano começa a encarar a morte paulatinamente mais olho-no-olho, pois deixa de contar com as talvez ilusórias fileiras protetoras das gerações mais velhas, que, por natureza, esperamos que desapareçam antes de nós."
    Esse trecho me fez lembrar de um dia em que no café da manhã, uns 2 anos antes do meu avô falecer, ele se sentou à mesa e disse que havia sonhado com várias pessoas naquela noite. Nenhuma delas ainda estava viva. Foi uma declaração tão melancólica que nunca mais me esqueci. Essa foi uma "leitura" marcante!
    Adorei o texto!

    ResponderExcluir

Deixe uma palavrinha