(Manuel Bandeira por Portinari)
Consoada
Quando a
Indesejada das gentes chegar
(Não sei
se dura ou caroável),
Talvez eu
tenha medo.
Talvez
sorria, ou diga:
- Alô,
iniludível!
O meu dia
foi bom, pode a noite descer.
(A noite
com seus sortilégios.)
Encontrará
lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa
posta,
Com cada
coisa em seu lugar.
(Manuel
Bandeira)
Em minha
memória, a primeira vez em que tive contato com o poema acima, do pernambucano
Manuel Bandeira, foi em uma aula de inglês, por incrível que pareça. Peço
mil desculpas ao curioso leitor por minha capacidade mnemônica insuficiente,
mas não consigo lembrar-me de como um poema em língua portuguesa foi invadir
uma aula do idioma de Shakespeare. Com diria Chicó, só sei que foi assim.
Lembro que a palavra consoada despertou-me inquietante aguilhão,
como sempre me ocorre, ao deparar com um vocábulo desconhecido. Sendo parte do
título, certamente conhecer o significado da palavra seria elemento-chave para
a interpretação do poema.
2. Muita
gente tem medo de poesia, e aqui uso o termo no sentido estrito, de gênero
literário, para não confundirem com o poético em sentido amplo, presente em
todas as artes e, inclusive, fora delas, como quando se fala da poesia das
coisas. Eu passei longos anos muito mais inclinado à prosa do que à poesia, em
parte por causa da dificuldade maior de acesso a este gênero, em parte por
causa do enfado que me causavam aqueles que espalham pelo mundo desabafos em
formato de verso e consideram que é poesia. Não entro nesse mérito agora,
porque exigiria muito mais espaço do que comporta o presente comentário ao
poema de Bandeira.
3. Não
percamos o fio da meada: o medo de poesia. Nunca tive aversão, algum contato
sempre mantive, mas, como disse, havia um pendor para a prosa. Aqui vai uma
revelação pessoal, em homenagem a Literaterapia, minha comentadora predileta e
mais assídua e principal incentivadora desta postagem sobre poesia: quando
cursei uns semestres da graduação em Letras, tive uma excelente professora de
Teoria Literária. Creio que devo a ela o fato de a poesia ter despertado mais
interesse e tempo de leitura de minha parte. Pelo exercício conjunto de leitura
e de análise dos poemas com a turma e também pela seleção de saborosos textos
de crítica sobre poesia, ela fez crescer meu entusiasmo pelo gênero.
4.
Pergunta: o que aprendi sobre a leitura de poesia, que não serve, necessariamente,
de receita para todo mundo, mas pode ser uma experiência que indique caminhos?
Nenhuma boa literatura revela-se totalmente de cara. Mesmo os textos em prosa
com significado evidente à uma primeira leitura devem guardar uma rede
subterrânea de sentidos que os leitores mais maduros desencavam com paciência
de mineradores. Com a poesia, isso torna-se ainda mais verdadeiro. Há, claro,
os poemas que fascinam o leitor médio à primeira visada, pelo ritmo, pela
melodia, pelo jogo de palavras, como aquele peixe das regiões oceânicas
abissais atrai sua presa com uma luz sedutora. Acho que os poemas de Augusto
dos Anjos são assim. Ilude-se, porém, quem acha que eles se esgotam nisso.
Também perdem muito, como quem julga um livro pela capa, aqueles que menosprezam
um poema que não se apresenta em roupagem de luxo.
5. Em um
bom poema, o sentido vem condensado. As palavras, os acontecimentos, a
realidade estão comprimidos como na desgastada metáfora da semente. Assim como
é necessário plantar, adubar, cavoucar a terra ao redor, regar e ter paciência
para a semente revelar a planta, é também preciso ler, reler, correr ao
dicionário, pronunciar as palavras, misturar as linhas, desconfiar e ter mais
ou menos paciência, até os sentidos enterrados no poema perderem a timidez e
apresentarem-se à luz de sua consciência, leitoras e leitores deste pouco
movimentado blog. Quase sempre e de propósito, os sentidos são muitos, há
diversos caminhos a seguir, e o percurso de um intérprete cruza-se com o do
outro, mas ninguém está errado ou certo. A lida com os poemas, em muitos
aspectos, parece um jogo, um quebra-cabeças, uma charada, um desafio lógico,
mas não restrito ao campo da razão. Tudo isso costuma proporcionar-me um prazer
danado, que não sei se vocês também sentem, mas gostaria muito de poder
compartilhá-lo.
6. Esta
postagem está comprida, mas, se chegamos até aqui, não voltemos nem fiquemos no
meio da estrada. Na verdade, a volta que faremos será ao texto de Manuel
Bandeira. Paramos na importância de desvelar o significado da palavra consoada, que dá título ao
poema. Fiz um rodeio para ilustrar como é necessário enfrentar os poemas,
armar-se do dicionário e avançar sobre o texto com todos os meios
disponíveis. Segundo o Dicionário Houaiss (vocês verão muito o nome de
Houaiss no Palavra de
Literatura), consoada tem dois significados:
a) "leve refeição noturna, sem carne, que se toma em dia de
jejum";
(Consoada, como se chama a ceia
de Natal em Portugal)
7. E
agora? Ficamos com a acepção "a" ou com a "b"? Embora ambas
se refiram a uma refeição, contrapõem-se quanto à medida. Uma é frugal,
conformada, franciscana, penitente, quase a continuação do jejum; outra é uma
ceia festiva, uma comemoração com comes e bebes e com gente a granel. Guardemos
esses dois significados, cada qual referente a um conjunto de imagens, e
retomemos o poema passo a passo.
8. A
pessoa que fala por intermédio do poema, o chamado eu poético ou eu lírico,
antecipa como recepcionará a morte, "a Indesejada das gentes".
Detenhamo-nos. Note-se que a morte não é nomeada senão por um epíteto esquivo,
de maneira indireta: "a Indesejada das gentes". Eu poderia arriscar
que essa forma de referir-se à morte remete àquele velho e humano temor de
pronunciar o nome de tudo quanto mais nos aterroriza: a última jornada (a
morte), o ceá (câncer), o aqui-inimigo de Deus (Satanás) e, para os leitores da
série Harry Potter, Você-sabe-quem (Voldemort). Reparemos agora na conjunção
"quando", que introduz o verso. Ela comunica-nos que a chegada da
morte é certa, e não se trata de uma hipótese, como poderia ser, se o verso
fosse: "Se a Indesejada das gentes chegar". Por último, perceba-se
que a morte aparece personificada, e pode-se, inclusive, sorrir para ela,
falar-lhe uma piada. Segundo o Dicionário
de Simbologia, de Manfred Lurker, a personificação, por tornar possível o
diálogo com ela, permite "uma superação emocional da vivência da
morte".
("A morte como amiga",
de Alfred Rethel)
9.
Passemos aos quatro versos adiante. Ao contrário do primeiro, que indica a
certeza da chegada da morte, os quatro seguintes demonstram a dúvida do eu
lírico com relação ao modo como a receberá. Primeiramente, especula sobre
a postura dela: "dura ou caroável", quer dizer, penosa e impiedosa ou
afável e gentil? Essa dúvida sobre a apresentação da Senhora da Foice combina
com a hesitação do eu poético quanto a sua reação à chegada: poderá temê-la, ou
tratá-la com simpatia e até com algum deboche, a depender, imaginemos, se for,
respectivamente, "dura ou caroável". No último caso, ele lhe dirigirá
um relaxado e conformado "Alô, iniludível!". Aqui, retoma-se a ideia
de que a chegada é certa, pois ninguém ilude a morte, ou livra-se dela.
10.
Podemos parar para um refresco na travessia desse poema. Chegamos a uma divisa.
Por causa do ritmo, estabelecido por um primeiro verso com doze sílabas
poéticas, seguido de um com oito e de três versos com seis sílabas; pelo número
de versos, cinco, equivalente à metade do total; bem como pelo tema, que, até
esta altura, foi a certeza da vinda da morte e a dúvida com relação a como se
reagirá a ela, terminamos uma seção.
11. Como
a primeira seção, a segunda é aberta por um verso com doze sílabas. Nele, o eu
lírico declara que seu dia foi bom e como que autoriza a descida - ou chegada -
da noite. Dia e noite representam, respectivamente, a vida e a morte. Assim
como o segundo verso, o sétimo vem entre parênteses, o que reforça, a meu ver,
a ideia de duas partes, por uma espécie de simetria calcada nos elementos de
forma e de conteúdo já citados. A noite, que estamos equiparando, no âmbito
simbólico, à morte, viria "com seus sortilégios", palavra que pode
significar feitiço e malefício, encanto e fascinação ou maquinação e trama secreta.
Todos esses sentidos podem ser atribuídos à morte.
12. Os
três últimos versos surpreendem. A atitude que normalmente se espera de alguém
que esteja na iminência da morte é de loucura, de desregramento, de desespero,
de desilusão ou de abandono. Quem aguarda a morte para logo passa a duvidar da
utilidade das coisas, deixa de fazer planos e de realizar projetos que
ultrapassem um dia, abdica de aprender o novo, não poupa dinheiro nem procura
precaver-se de nenhuma maneira: maximiza o princípio do carpe diem, muitas vezes,
em detrimento da razão. Lembre-se, por exemplo, da música de Paulinho Moska, da
qual transcrevo duas estrofes:
"Meu
amor o que você faria?
Se só te
restasse esse dia
Se O
mundo fosse acabar
Me diz o
que você faria?
Andava
pelado na chuva
Corria no
meio da rua
Entrava
de roupa no mar
Trepava
sem camisinha"
13. Nada
disso se acha na atitude do eu poético de Consoada.
Tudo indica que a proximidade da morte não altera seu modo de viver.
Representar, na segunda parte do poema, a vida e a morte como, respectivamente,
o dia e a noite, que também definem a rotina e o cotidiano, permite que o poeta
utilize as imagens subsequentes relativas a tarefas comezinhas, corriqueiras,
banais. Repare-se que o eu lírico não se abstém mesmo de cumprir tarefas que
pressupõem esforço, tempo e a fé na colheita, como é o caso de lavrar o campo,
no oitavo verso. Não descura do asseio da casa nem da arrumação de tudo.
14.
"A mesa posta" remete o leitor atento à palavra do título, consoada.
Pôr a mesa é um ritual. Na correria em que, quase sempre, vivemos, ninguém se
dá a esse trabalho: come-se em pé, no balcão da cozinha, no sofá da sala, defronte
à televisão. Arruma-se a mesa apenas em casas tradicionais ou em ocasiões mais
solenes, como uma ceia, seja de aniversário, seja de Natal, seja quando se têm
convidados. Vejam como é bonita a poesia: "a mesa posta" tanto pode
denotar que o eu poético tem tanta certeza da chegada iminente da morte, que se
prepara, como um anfitrião, para recepcioná-la; como pode indicar que ele está
tão tranquilo e sereno com relação a essa chegada, terrível para a maioria de
nós, que não se priva de seus rituais pessoais e de sua rotina por causa do
fim.
15. No
final das contas, parece-me que os dois sentidos da palavra consoada tocam
o poema. Por um lado, a acepção "a", "leve refeição
noturna, sem carne, que se toma em dia de jejum", coaduna-se com a solidão
da morte, com o estoicismo do eu poético face ao destino final, com a
disciplina de cumprir bem sua rotina, como se cumpre um jejum. Está presente,
inclusive, a imagem da noite, pois se trata de "refeição noturna".
Por outro lado, a acepção "b", "ceia familiar da Noite de
Natal ou de véspera de Ano Novo", suscita a ideia de preparação para uma
mudança ou para uma passagem, de espera solene.
Excelente análise! Minuciosa, detalhista, exemplificando cada explicação. Confere ao poema um colorido especial. Parabéns!!
ResponderExcluirMuito obrigado pela visita, pela leitura e pelo comentário elogioso!
ExcluirTrabalhei esse poema com meus alunos do 1o ano do Ensino Médio hoje. Achei excelente sua análise!
ResponderExcluirSusana, muito obrigado pela visita e pelo comentário, que me deixou muito feliz.
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