Desde a última página do diário de leitura de O Anjo Pornográfico, vamos ao que me chamou mais atenção.
Nelson Rodrigues, depois de fazer muito sucesso com Vestido de noiva, começou a enfrentar problemas com a censura. Por ironia, esses problemas passaram a existir depois da redemocratização do país, com a saída de Getúlio da Presidência. Cada peça escrita por Rodrigues, nessa época, como Álbum de família, O anjo negro e Doroteia, precisaria do auxílio de uma campanha movida por ele e por seus amigos, que envolvia, inclusive, pedido de parecer a um padre, oferecimento de jantar ao Ministro da Justiça e indicação de uma comissão de arbitramento composta por intelectuais isentos, para avaliar a liberação da peça. No caso de Doroteia, Nelson submeteu-a ao crivo dos censores como sendo de outro autor, um amigo seu, pois já se considerava maldito.
Também ressalta das últimas páginas lidas a criação de Suzana Flag. Como mais uma forma de ganhar dinheiro escrevendo, Nelson Rodrigues engendra folhetins bastante exitosos travestido dessa escritora com sobrenome estrangeiro, isso uma estratégia de marketing. Ruy Castro conta que Rodrigues tinha grande preocupação em não descobrirem que ele era o verdadeiro inventor daquelas narrativas. Grande propagandista, o dramaturgo consagrado temia que aquelas páginas maculassem sua reputação de artista da palavra. Os folhetins, depois publicados em livro, renderam a Nelson um bom dinheiro. A ideia deu tão certo, que depois ele criaria Myrna e, sob esse disfarce, ficaria encarregado de uma seção de jornal em que respondia a cartas de leitoras, como uma que teve os cabelos raspados pela mãe, para que não saísse de casa.
Merece um parágrafo à parte a montagem de O anjo negro, cujo papel-título foi escrito para Abdias do Nascimento, amigo de Nelson. Embora a peça tenha passado pela peneira da censura, o Teatro Municipal não autorizou a atuação de um ator negro. A montagem foi estrelada por um branco pintado de graxa. Essa idiotice ocorreu há pouco mais de meio século; outros ignominiosos penduricalhos de uma mentalidade pedestre permanecem, e tomara que se vão depressa. Ainda sobre esse assunto, deu vontade de ler um livro de Mário Filho, irmão de Nelson, citado no capítulo 17 de O Anjo Pornográfico: O negro no futebol brasileiro, que Ruy Castro diz ser a obra máxima de Mário, "uma espécie de Casa-grande & senzala urbana, um livro equivalente na historiografia racial ao de Gilberto Freyre. Se Castro tiver mesmo razão, não é pouca coisa.
Termino a página de hoje com algumas palavras de literatura aparecidas nas últimas páginas lidas:
Sua relação com qualquer tipo de documento era patafísica. Nelson perdia sua carteira profissional; a custo tirava outra no Ministério do Trabalho; tempos depois achava a carteira original e ficava com duas; em seguida, perdia ambas; depois de tirar uma terceira via, achava as duas primeiras. E todas iam sendo carimbadas e anotadas por funcionários tão patafísicos quanto ele
Dito assim, pode-se pensar que Nelson enfrentava problemas em casa ou que seu casamento com Elza, tendo sobrevivido à acídia dos sete anos, estivesse começando a deslizar pela ribanceira.
"Precisamos acabar com esse preconceito de que o público brasileiro é alvar, só sabe rir."
Se Álvaro Lins, que era Álvaro Lins, achava isso, que importava para Nelson que aquela plateia de lorpas e pascácios não lhe tivessem dado bola?
Um branco pintado de graxa... Sem comentários! Parece que a humanidade caminha em circulos. Nunca sai do mesmo lugar.
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