11/03/2015

Diário de leitura: "A desumanização" - parte 2


Hoje vou fazer uma postagem de preguiçoso, porém os leitores fingirão que não notaram, e nossa amizade seguirá firme e cordial. Não avancei na leitura de A desumanização, quando já deveria tê-la concluído. No Dia das Mulheres, preferi dedicar meu tempo a Chimamanda Adichie e a Virginia Woolf, como os dois textos do final de semana comprovam. Ontem e hoje, não encontrei forças para desgarrar-me dos lençóis e fazer minha sessão matinal de leitura, sempre com o auxílio do café, antes de aprontar-me para o dia de trabalho. Dormi vergonhosamente até o último segundo possível e atrasei minha agenda. 

Nas duas horas de almoço que me são garantidas, protocolei o pedido de inscrição como aluno especial no Mestrado em Literatura da UnB e espremi meu almoço no que restou do tempo. Fica, assim, justificada, pelo menos tentativamente, minha página preguiçosa do diário de hoje. Quem for esperto já adivinhou que vou transcrever trechos que me chamaram a atenção no livro de Valter Hugo Mãe. Como disse na primeira página do diário sobre esse romance, ele é riquíssimo em imagens poéticas e frases marcantes, todavia não me tem entusiasmado no todo. Os excertos seguintes foram retirados das cinquenta primeiras páginas.

"Achei que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser ao acaso. Pensei que a morte era feita ao acaso."

O livro começa com o sepultamento da irmã gêmea da narradora. A mãe perturba-se muito com o fato e passa a cobrar da "menos morta", como fica conhecida a irmã sobrevivente na comunidade isolada em que vive, um comportamento compensatório. Em seus delírios, a mãe chega a acreditar que a gêmea falecida voltará, ou que a restante deve fazer companhia à outra no além.

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"Os mortos não se encolhiam, não se aconchegavam melhor, ficavam tal como os tivessem deixado."

Realmente, poder mudar de posição, esticar-se, ou encolher-se contra o frio são ações que proporcionam bastante conforto aos vivos. Achei interessante que a narradora, uma menina de zona rural de seus 12 anos, órfã da irmã gêmea, de quem se esperam percepções menos racionais do que fantasiosas, pensasse no bem-estar corpóreo da mana enterrada. 

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"Repeti: a morte é um exagero."

A morte é mesmo um exagero. Na falta de um substantivo mais exagerado.

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"A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes."

Aqui vai a ideia de que nosso eu, nossa identidade, constitui-se na linguagem e na comunicação com um outro, que é um agregado de todos os outros indivíduos. Dar-se conta disso é muito pedagógico e permite refletir melhor sobre as razões de sermos como e o que somos.

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"Ele insistia explicando-me que as crianças eram modos de espera. Queria dizer que as crianças não tinham verdades, apenas pistas."

Esse trecho fez-me lembrar de um livro do biólogo evolucionista e militante ateísta Richard Dawkins, Deus: um delírio. Em certo ponto, discute a associação de crianças às religiões. Recusa os pares "menino católico", "criança muçulmana", "bebê budista" e sugere, em vez disso, "menino de pais católicos", "criança filha de muçulmanos" e "bebê nascido em família budista".

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"A bondade pode não ser uma característica de deus. Pode ser apenas ignorância nossa."

Não que eu concorde. Essa ideia chamou-me a atenção por ser uma forma mais engenhosa de dizer que os desígnios de Deus são inescrutáveis. É o argumento de fé mais comum, quando se apresenta o problema de existir o mal em um mundo inteiramente criado por um Deus onipotente e onisciente por definição.

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"Quero ser longe."

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"Merecíamos o calor e a saúde."

Quem mora nas áreas mais geladas de um país que tem gelo no nome, a Islândia (Iceland), certamente esperará como prêmio de seus méritos o calor, assim como meu avô paterno, originário do sertão paraibano, considerava a chuva uma das maiores bênçãos possíveis. Morando no litoral depois de décadas, meu avô ainda é capaz de dizer, ao ver o céu nublado, que "o tempo está se enfeitando pra chover", provavelmente para a estupefação dos litorâneos que associam dia bonito ao céu ensolarado, propício à torra na areia da praia.

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"Queria uma palavra alarve, muito gorda, uma que usasse todo o alfabeto e muitas vezes, até não se bastar com letras e sons e exigisse pedras e pedaços de vento, as crinas dos cavalos e a fundura da água, o tamanho da boca de deus, o medo todo e a esperança. Uma palavra alarve que fosse tão feita de tudo que, quando dita, pousasse no chão definitivamente, sem se ir embora para que a pudéssemos abraçar. Beijar."

Olha a palavra de literatura aí: "alarve". Significa "grosseiro", "rústico", "bruto", acepções preconceituosas, derivadas de "os árabes" (al-arab). No contexto do trecho acima, a narradora, ciosa do poder presentificador das palavras, almeja uma que, designando sua irmã morta, seja capaz de fazê-la reencarnar.

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"O tempo também se conta pelos desgostos."

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"Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia."

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"Os livros. Eram os livros. Diziam-me coisas bonitas e eu sentia que a beleza passava a ser um direito."

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"As partes dos homens eram para fora, mais dadas à limpeza e à honestidade. Eram muito mais honestas, dizia. Viam-se bem e não enganavam quanto a tamanhos e outras medidas e sabores. As partes dos homens eram estáveis. De confiança. Como se fossem mais inteligentes."

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