Fiquei feliz em ter visto um filme brasileiro assim bom como é Que horas ela volta? É muito difícil entreter a atenção, suscitar temas sociais e políticos tão difíceis quanto relevantes e, ao mesmo tempo, revestir isso em uma forma sofisticada. Trata-se de uma raridade no cinema brasileiro, e é o que se vê no novo filme da diretora pernambucana Anna Muylaert. Como grande realização artística, permite várias interpretações, e eu já li algumas muito bacanas, como a do crítico de cinema João Batista de Brito, no blog Imagens Amadas.
Algo que me despertou especialmente a atenção foram os títulos escolhidos para o filme em francês e em inglês, ambos significando mais ou menos o mesmo. Em francês, "La séconde mère", e, em inglês, "The second mother", isto é, "A segunda mãe". Note-se que, enquanto o título brasileiro estabelece um paralelismo entre as falas dos dois filhos, Fabinho e Jéssica, em momentos distintos da narrativa, ressaltando circunstâncias da ação, os dois títulos estrangeiros mencionados optam por realçar a posição da protagonista, Val, encarnada por Regina Casé.
As reintitulações de filmes para distribuição em mercados de língua diferente daquela em que foram produzidos, por mais comercial que seja seu critério, são sempre uma opção interpretativa da obra. O título brasileiro aponta para a ausência das duas mães, a da patroa e a da empregada doméstica. Assistir ao filme à luz desse título convida a uma comparação entre as situações delas: Bárbara está fisicamente próxima ao filho, mas é sentida por ele como ausente ou distante, seja por razões de personalidade, seja pelas obrigações de uma mulher de sua classe social no tempo histórico que vive; Val está longe da filha pela convicção de que esse sacrifício da proximidade afetiva seria necessário para garantir à menina conforto e um futuro melhor. Em ambos os casos, há uma imbricação entre as esferas social e subjetiva das vidas dessas mães, a qual suscitaria várias questões sobre o lugar da mulher, sobre diferenças sociais e regionais etc., tudo isso muito bem plasmado e sintetizado na tela.
Os títulos em francês e em inglês privilegiam o ponto de vista da personagem Val. Ela é segunda mãe em muitos sentidos na trama, e esses sentidos são especialmente significativos pelo fato de ela ser a única personagem que cresce ou muda entre o começo e o final do filme, conforme apontou o crítico João Batista de Brito, citado no primeiro parágrafo. Bárbara, Jéssica, Fabinho e Carlos movem-se no tempo de tela, mas terminam praticamente igual a si mesmos no começo. Val é a única que passa por um movimento interior, transformada por uma espécie de epifania, que ela mal consegue verbalizar e é simbolizada por sua transgressão de entrar na piscina dos patrões à noite, às escondidas. Ao verificar o êxito da filha, Val perde medos, amplia horizontes, atreve-se em coragem esperançosa. A medida do possível alargara-se em sua mundivisão.
Val é segunda mãe de Fabinho, a quem dedica uma afetividade generosa que vai além de suas obrigações decorrentes do contrato de trabalho com aquela família. A personagem de Regina Casé também é, por anos, a segunda mãe de Jéssica, a mãe que exerce função provedora material, porque não lhe foi possível atuar simultaneamente como provedora material e afetiva. Após a transformação ocorrida no final do filme, em um momento de reconciliação com a filha e consigo, com sua dignidade, Val será tanto a segunda mãe do neto, aquela que permitirá que sua filha continue sua trajetória de superação social, como será, agora em outro sentido, uma segunda mãe para Jéssica, segunda em relação à primeira que ela mesma foi.
Diferentemente do ocorrido a Jéssica e a Fabinho, o neto de Val estará próximo à mãe e, nas horas em que isso não for possível, receberá o cuidado de alguém ligada à mãe por um vínculo sagrado, simbolicamente significativo, por lealdade familiar, não por favor ou por contrato de trabalho. Acontece como que uma reconciliação do aspecto familiar para essas nordestinas separadas pelas adversidades sociais.
Que horas ela volta? ou La séconde mère é um filme composto por vários filmes, e é isso que o torna uma grande obra de arte. Cada ponta dele pode ser desfiada e originar uma infinidade de questões, de formas e de sentidos. Para cada recorte, poderia haver um novo título, com mais um novelo interpretativo.
As reintitulações de filmes para distribuição em mercados de língua diferente daquela em que foram produzidos, por mais comercial que seja seu critério, são sempre uma opção interpretativa da obra. O título brasileiro aponta para a ausência das duas mães, a da patroa e a da empregada doméstica. Assistir ao filme à luz desse título convida a uma comparação entre as situações delas: Bárbara está fisicamente próxima ao filho, mas é sentida por ele como ausente ou distante, seja por razões de personalidade, seja pelas obrigações de uma mulher de sua classe social no tempo histórico que vive; Val está longe da filha pela convicção de que esse sacrifício da proximidade afetiva seria necessário para garantir à menina conforto e um futuro melhor. Em ambos os casos, há uma imbricação entre as esferas social e subjetiva das vidas dessas mães, a qual suscitaria várias questões sobre o lugar da mulher, sobre diferenças sociais e regionais etc., tudo isso muito bem plasmado e sintetizado na tela.
Os títulos em francês e em inglês privilegiam o ponto de vista da personagem Val. Ela é segunda mãe em muitos sentidos na trama, e esses sentidos são especialmente significativos pelo fato de ela ser a única personagem que cresce ou muda entre o começo e o final do filme, conforme apontou o crítico João Batista de Brito, citado no primeiro parágrafo. Bárbara, Jéssica, Fabinho e Carlos movem-se no tempo de tela, mas terminam praticamente igual a si mesmos no começo. Val é a única que passa por um movimento interior, transformada por uma espécie de epifania, que ela mal consegue verbalizar e é simbolizada por sua transgressão de entrar na piscina dos patrões à noite, às escondidas. Ao verificar o êxito da filha, Val perde medos, amplia horizontes, atreve-se em coragem esperançosa. A medida do possível alargara-se em sua mundivisão.
Val é segunda mãe de Fabinho, a quem dedica uma afetividade generosa que vai além de suas obrigações decorrentes do contrato de trabalho com aquela família. A personagem de Regina Casé também é, por anos, a segunda mãe de Jéssica, a mãe que exerce função provedora material, porque não lhe foi possível atuar simultaneamente como provedora material e afetiva. Após a transformação ocorrida no final do filme, em um momento de reconciliação com a filha e consigo, com sua dignidade, Val será tanto a segunda mãe do neto, aquela que permitirá que sua filha continue sua trajetória de superação social, como será, agora em outro sentido, uma segunda mãe para Jéssica, segunda em relação à primeira que ela mesma foi.
Diferentemente do ocorrido a Jéssica e a Fabinho, o neto de Val estará próximo à mãe e, nas horas em que isso não for possível, receberá o cuidado de alguém ligada à mãe por um vínculo sagrado, simbolicamente significativo, por lealdade familiar, não por favor ou por contrato de trabalho. Acontece como que uma reconciliação do aspecto familiar para essas nordestinas separadas pelas adversidades sociais.
Que horas ela volta? ou La séconde mère é um filme composto por vários filmes, e é isso que o torna uma grande obra de arte. Cada ponta dele pode ser desfiada e originar uma infinidade de questões, de formas e de sentidos. Para cada recorte, poderia haver um novo título, com mais um novelo interpretativo.
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