Quando escrevi sobre valter hugo mãe aqui pela primeira vez, mencionei que ele era português. Uma amiga virtual querida, grande incentivadora de minha incursão pela obra desse autor, informou que, na verdade, ele era angolano. De fato, eu havia lido algo sobre hugo mãe ter nascido em Angola, mas fui checar: é português e nasceu em Angola. A confusão explica-se, ao menos em parte, pelo fato de o país africano ter sido colônia portuguesa até a década de 1970, e provavelmente os vínculos do autor com o território sobre o qual sua mãe o deu à luz não foram muito além do parto. Esse impasse suscitou-me uma dúvida: por que costumeiramente consideramos relevante conhecer a nacionalidade de um autor e por que Literatura e nacionalidade parecem andar de mãos dadas ao longo da história?
Se repararmos bem, o gentílico é sempre um dos primeiros adjetivos a aparecer em qualquer comentário ou sinopse biográfica relativos a um autor. Peguei cinco livros quaisquer aqui na estante. O primeiro foi Memórias do subsolo, de Dostoiévski. No primeiro parágrafo da orelha, encontrei: "No âmbito circunscrito à produção do maior romancista russo, essa narrativa (...)". O segundo foi o já resenhado aqui no blog o remorso de baltazar serapião. Também na orelha, mas, desta vez, no segundo parágrafo, encontrei sobre o autor do livro: "o escritor português valter hugo mãe, nascido em Angola, em 1971 (...)". O terceiro, só por coincidência na lusofonia, foi Venenos de Deus, remédios do Diabo, de Mia Couto. Diferentemente dos anteriores, a orelha trazia uma minibiografia do autor iniciada assim: "Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955". O quarto, da vencedora do Nobel de Literatura, repetia o padrão inicial de trazer, logo no começo da orelha, a informação sobre a autora: "os ensaios de Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, de Herta Müller, escritora alemã (...)". Por último, peguei um brasileiro, para verificar como a origem de um escritor nativo seria tratada por uma editora nacional. Em Meus verdes anos, começa assim a biografia do autor impressa na orelha traseira: "José Lins do Rego nasceu na Paraíba em 1901".
Aquelas coleções lançadas em bancas de revista reforçam a associação entre nacionalidade e literatura, organizadas em "Clássicos da Literatura Brasileira" e "Clássicos da Literatura Universal". As livrarias costumeiramente separam as obras de ficção em estantes para "Literatura Brasileira" e "Literatura estrangeira". No Ensino Médio, não estudamos simplesmente Literatura, mas, Literatura Brasileira. Por fim, nos cursos universitários de Letras, é corriqueiro os currículos contarem com disciplinas literárias identificadas pela nacionalidade: Literatura Norte-Americana, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Espanhola.
A literatura como a concebemos até bem pouco tempo atrás é tributária, como vários conceitos que determinam fortemente nossa mundivisão, do momento histórico de formação dos Estados-Nação europeus. É bem difundida a relação entre a invenção da imprensa por Gutenberg, a Reforma Protestante e a tradução da Bíblia do latim para as línguas vernáculas. Em uma época sem produção audiovisual, o entretenimento, a difusão de ideias e a disseminação de representações estava atrelada ao texto escrito em línguas locais como nunca ocorrera antes.
Talvez uma boa explicação decorra do fato de que a Literatura é representação social, e as fronteiras, por longos séculos, delimitaram padrões particulares de organização social. As contradições e os traços típicos da sociedade brasileira do final do século XIX, agrário, escravagista, elitista, patrimonialista, divergiam essencialmente dos conflitos e das características que grassavam, por exemplo, na sociedade britânica da mesma época, industrializada, urbana, liberal. Sendo verdadeira essa premissa da ficção literária como representação, o contexto em que o escritor produziu a obra serviria de chave para a interpretação pelo leitor.
Retomo a questão com valter hugo mãe e pergunto-me em que medida, no caso dele e no de inúmeros escritores contemporâneos, faz diferença a nacionalidade deles atualmente. As fronteiras guardam muito de sua força, como ilustram as resistências europeias contra a onda de refugiados procedentes de áreas conflagradas no Oriente Médio, epitomada na imagem do menino sírio encontrado morto na beira da praia. Por outro lado, tornaram-se muito porosas, principalmente pela relativamente maior mobilidade e pela comunicação instantânea e de baixo custo que aproxima cultural e socialmente várias regiões do mundo. Talvez haja cada vez menos diferenças nas relações sociais dentro de cada território, e um escritor como valter hugo mãe engendra uma obra ambientada na Islândia, como a desumanização, ao passo que a brasileira Adriana Lisboa escreve Rakushisha, cuja ação transcorre quase totalmente no Japão. Resta aguardar, para verificar se e quanto o processo de globalização mitigará as diferenças e especificidades locais, regionais e nacionais na literatura.
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