O moleque Ricardo é um romance particularmente rico na produção do paraibano José Lins do Rego. Celebrizado pelas obras do chamado ciclo da cana de açúcar, que reconstitui vivamente os aspectos privados e socioeconômicos da civilização do açúcar, Zé Lins criou essa espécie de interregno, que é o livro objeto desta resenha. O foco da narrativa desloca-se da elite canavieira e da geografia da várzea do Paraíba para o negro Ricardo e suas peripécias no mundo urbano do Recife nas primeiras décadas do século XX.
(O pernambucano Manuel Bandeira e o paraibano José Lins do Rego, este com a farda da Academia Brasileira de Letras)
Desde o ano passado, estou relendo, em alguns casos, e lendo, em outros, todos os romances do ciclo açucareiro. Reli Menino de engenho e li Doidinho, Banguê e Usina, além do já mencionado O moleque Ricardo. Falta, para completar o projeto, a releitura de Fogo morto, considerado a obra-prima do autor. Tenho particular interesse por essas histórias, porque, sendo paraibano, o ambiente descrito é-me familiar, e eu pretendo aproveitar o resgate da natureza e da sociedade da época para, quem sabe, escrever um livro sobre o qual poderei comentar futuramente. Zé Lins registrou aspectos dessa civilização que não são facilmente recuperados por meio de pesquisa em arquivos, de modo que sua literatura, além das qualidades estéticas e da função que exerce como arte, também é fonte histórica valiosa.
(Minha edição de O moleque Ricardo, caixa com livros do ciclo da cana-de-açúcar e os dois do ciclo do cangaço)
Como eu dizia, O moleque Ricardo conecta-se com os demais romances do ciclo, mas incorre em um duplo deslocamento, que tem efeitos extraordinários. A leitura pode ser feita independentemente, mas aposto que fica bem melhor, se realizada na sequência, porque as referências a personagens, ao mundo do engenho e a situações tornam o relato muito mais interessante. Como diz uma personagem de Saramago no romance Caim: "nos pormenores é que está o sal".
Os momentos mais temperados do livro são aqueles em que Ricardo confronta os dois mundos, o rural do engenho e o urbano do Recife. Há um jogo de expectativas e de frustrações do começo ao fim, e a prosa de Zé Lins, íntima, amiga, dotada da difícil simplicidade que caracteriza a fala dos grandes contadores de histórias ao pé do fogão ou no alpendre de casa, enreda-nos na torcida pelo pobre moleque de bagaceira que, apesar de todos os motivos de revolta que a vida lhe daria, esmera-se no trabalho, esforça-se diligentemente e seria candidato a case de self-made man, se ele existisse em um meio social que premiasse o empenho e o mérito.
Ao ler O moleque Ricardo, prestem atenção à diversidade de elementos da vida urbana recifense, comum a várias cidades brasileiras do início do século, com a diferença apenas da medida. Comparecem os imigrantes, a miséria das periferias, os carnavais de rua, o engajamento popular nos blocos, a religiosidade que mistura crenças de matriz africana com o catolicismo nosso de todo o sempre, o surgimento do movimento sindical e das primeiras greves, o oportunismo de políticos populistas que pegam carona nos anseios de vida digna dos operários citadinos. O livro é largo e profundo, sem perder a coesão, cujo núcleo é a personagem-título.
Eu dei 4 estrelas de 5. Minha edição é a 27.a, com a capa amarelo creme que caracterizou uma leva de edições da obra de Zé Lins. As capas mais recentes estão mais bonitas, com imagens em estilo de xilogravura e um quadrado monocromático com aplicação de verniz, em que ficam os nomes do autor e de cada obra. O trecho que selecionei para a postagem do @palavradeliteratura foi este:
Se já leu O moleque Ricardo, diga-me o que achou no campo de comentários abaixo!
Os momentos mais temperados do livro são aqueles em que Ricardo confronta os dois mundos, o rural do engenho e o urbano do Recife. Há um jogo de expectativas e de frustrações do começo ao fim, e a prosa de Zé Lins, íntima, amiga, dotada da difícil simplicidade que caracteriza a fala dos grandes contadores de histórias ao pé do fogão ou no alpendre de casa, enreda-nos na torcida pelo pobre moleque de bagaceira que, apesar de todos os motivos de revolta que a vida lhe daria, esmera-se no trabalho, esforça-se diligentemente e seria candidato a case de self-made man, se ele existisse em um meio social que premiasse o empenho e o mérito.
Ao ler O moleque Ricardo, prestem atenção à diversidade de elementos da vida urbana recifense, comum a várias cidades brasileiras do início do século, com a diferença apenas da medida. Comparecem os imigrantes, a miséria das periferias, os carnavais de rua, o engajamento popular nos blocos, a religiosidade que mistura crenças de matriz africana com o catolicismo nosso de todo o sempre, o surgimento do movimento sindical e das primeiras greves, o oportunismo de políticos populistas que pegam carona nos anseios de vida digna dos operários citadinos. O livro é largo e profundo, sem perder a coesão, cujo núcleo é a personagem-título.
Eu dei 4 estrelas de 5. Minha edição é a 27.a, com a capa amarelo creme que caracterizou uma leva de edições da obra de Zé Lins. As capas mais recentes estão mais bonitas, com imagens em estilo de xilogravura e um quadrado monocromático com aplicação de verniz, em que ficam os nomes do autor e de cada obra. O trecho que selecionei para a postagem do @palavradeliteratura foi este:
A lua banhava tudo de branco como nas cajazeiras da estrada. Mãe Avelina, Joana, todas se sentavam na porta da rua para apreciar o luar. O terreiro parecia uma toalha de MADAPOLÃO estendida.Reproduz bem o estilo de Zé Lins, com imagens muito concretas, que evocam os sentidos e o passado. "Madapolão" é, segundo o Dicionário Houaiss, um "tecido encorpado de algodão, branco e liso". Na cena descrita, as ex-escravas ficadas no engenho por falta de rumo melhor, inclusive a mãe de Ricardo, Avelina, estão sentadas ao relento, em noite de Lua, provavelmente trocando impressões sobre o dia, falando da vida alheia ou ouvindo histórias sem tempo. O terreiro, onde sujam esquecidas os pés de poeira e acompanham, de soslaio, a brincadeira dos moleques, está todo coberto pela luz lunar benfazeja, que não discrimina ninguém, como um manto da santa protetora.
(Obra de Cícero Dias com reprodução do ambiente do Engenho Noruega)
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Ficou ótima sua resenha, "O moleque Ricardo" é um livro lindo mesmo.
ResponderExcluirPessoalmente, acho que não é das melhores obras do José Lins, mas ele é tão bom que a obra se mantém constante e excelente.
Gosto de como ele é lento, como descreve cada dia, é o tipo de coisa que ninguém mais faz em literatura, escrever com essa paciencia e essa habilidade toda.
Também escrevi sobre ele, ó:
https://aoinvesdoinverso.wordpress.com/2015/06/26/resenha-o-moleque-ricardo-jose-lins-do-rego/
Caro Bruno, fico agradecido por sua visita, pela leitura da resenha e pelo elogio. Não concordo com você quanto à posição de "O moleque Ricardo" na obra de Zé Lins, mas aí também vai uma opinião pessoal. Rememorando agora, não consigo colocá-lo em patamar inferior aos outros. Talvez ao contrário, entre todos que li, talvez seja o que mais me moveu intelectualmente e me moveu emocionalmente. Já estou com sua resenha aberta aqui em uma aba à parte. Tão logo possa, eu a lerei e comentarei. Volte sempre, hein!
ExcluirVoltarei sim, favoritei seu blogue aqui para ler mais.
ExcluirUm abraço