20/01/2015

Dois irmãos: desventrar

No ano passado, meus colegas de trabalho e eu decidimos começar um clube de leitura. A ideia era cada um escolher, em rodízio, um livro não muito extenso, para ser lido por todos e depois debatido. O primeiro a escolher fui eu. Nunca lera nada de Milton Hatoum, embora, comprador compulsivo de livros, já tivesse o Dois irmãos na prateleira, exemplar da coleção Companhia de Bolso. Por felicidade, indiquei-o, e todos acataram. À medida que líamos, uns mais rapidamente do que outros, com cuidado para não fazer spoiler, comentávamos a trama com crescente entusiasmo. Muito do que incluirei neste comentário terá sido aproveitado das impressões compartilhadas por esses meus amigos, quando discutimos a obra, depois de muito adiamento, em uma casa de chá de Brasília. Todos terminaram a leitura e gostaram tanto do romance, que estamos agora lendo Cinzas do Norte.


(Dois irmãos, de Milton Hatoum, na edição regular e na de bolso, a que li)

A trama de Dois irmãos é tecida pela rivalidade talvez inata entre Yaqub e Omar, os dois irmãos a que o título alude. À medida que crescem, ganham força física e poder de todos os tipos, os conflitos entre os irmãos e sua repercussão sobre a família ficam mais tensos, complexos, anuviados e irreversíveis. Pelo que percebi da recepção de meus colegas à história, é natural que nós, leitores, tomemos logo partido por um dos dois, a depender de nossos valores e nossas identificações. Isso também me aconteceu. De todas as personagens, cada qual com suas imperfeições humanas, a única que praticamente não contou com minha simpatia foi Omar, que conquistou o apoio apenas de um dos colegas integrantes do clube de leitura.

O tempo do romance estende-se, grosso modo, da época em que os pais dos gêmeos se conheceram, em torno da década de 1920, até os anos que sucederem o Golpe Civil-Militar de 1964. O cenário principal é a capital amazonense, e o autor, manauara, recheia o livro de espécies animais e vegetais amazônicos, pratos típicos com sugestão de sabores e de cheiros, descrições dos hábitos da vida em cidade fluvial e outros elementos que ajudam a formar uma ambiência que eleva Manaus à condição de cidade literária. O narrador, cujo nome mal aparece, é Nael, filho de Domingas, uma índia que chegou à casa dos pais dos gêmeos, Zana e Halim, que têm origem libanesa, para servi-los uma vida inteira.


(Uma catraia navegando no igarapé de S. Raimundo, em Manaus)

"Mas a visão das dezenas de catraias alinhadas impressionava mais. No meio da travessia já se sentia o cheiro de miúdos e vísceras de boi. Cheiro de entranhas. Os catraieiros remavam lentamente, as canoas emparelhadas pareciam um réptil imenso que se aproximava da margem."

Em algumas ocasiões, os acontecimentos narrados por Nael parecem assumir função alegórica. As mortes de alguns personagens, que eu não direi quais são, para não surrupiar de vocês o elemento surpresa, provavelmente simbolizam momentos-chave da ditadura que se instalou no Brasil depois de 1964. Uma das personagens morre em 1964, e a outra, em 1968: o primeiro, o ano da primeira estocada na ordem constitucional do país; o segundo, marco do endurecimento repressivo. Em um post-scriptum*, direi quem são as personagens e o que suas mortes podem simbolizar.

A rivalidade entre dois irmãos alinha o romance de Milton Hatoum em uma longa tradição mítico-literária, que remete aos bíblicos/corânicos Caim e Abel, filhos do primeiro casal Adão e Eva, e Esaú e Jacó, assim como a Pedro e Paulo, personagens do penúltimo romance machadiano, intitulado Esaú e Jacó. Não deve ser por acaso que "Yaqub" equivale, em árabe, a "Jacó", mas as duas personagens não se encaixam perfeitamente. Por exemplo, na Bíblia, Jacó era o gêmeo mais moço que surrupiou a primogenitura do irmão Esaú, por meio de uma artimanha para a qual contou com o apoio da mãe, Rebeca. Yaqub não é o predileto de Zana nem é o caçula. Yaqub coincide com Jacó pelo nome, por uma espécie de primogenitura espiritual, pelo exílio e pelo modo de agir matreiro e calculado. Omar aproxima-se de Esaú por ser peludo e truculento, mas, diferentemente da personagem bíblica, é o preferido da mãe.


(Edição recente de Esaú e Jacó, penúltimo romance do mestre supremo da literatura brasileira, Machado de Assis. A trama também gira em torno da rivalidade entre irmãos gêmeos)

Os nomes das personagens não são aleatórios. Como mencionado, Yaqub remete a Jacó. Halim, o pai dos gêmeos, além de ser um adjetivo árabe que significa gentil, paciente, compreensivo, ameno, é um dos noventa e nove nomes de Deus, no Islamismo, aquele que designa seu aspecto condescendente e misericordioso com a desobediência. Tudo isso combina com o temperamento da personagem Halim, em Dois irmãos. Nael, por sua vez, é um nome corânico que significa, ao mesmo tempo, corajoso, vencedor, descobridor, realizador e dádiva, isto é, aquilo que Alá concede a alguém. Como a narrativa do livro decorre de uma busca de Nael, e ele é um sobrevivente relativamente exitoso do caos que é a família em cujo seio foi criado, o sentido de seu nome reforça as características e o destino da personagem.

Dois irmãos foi um dos melhores livros que li em 2014. Recomendo muito a leitura e tenho até vontade de relê-lo. Não tenho muita simpatia por autores contemporâneos, pois confio no crivo do tempo para selecionar minhas leituras, tão limitadas pelo período curto de vida que temos, mas Milton Hatoum merece minha atenção e admiração. Fico feliz em saber que a boa literatura brasileira ainda gera talentos. Ontem terminei Cinzas do Norte, também dele, e, embora não tenha superado Dois irmãos, é outra leitura que vale muito a pena. Oportunamente, devo escrever aqui sobre ele também.


(Traduções de Dois irmãos em alemão, inglês e francês)

No @palavradeliteratura, o trecho que postei de Dois irmãos é parte de uma sequência em que Omar, o enfant terrible do livro, é acometido de loucura e passa a remexer o quintal de casa:


"Catava frutas bichadas, mas perdia tempo com uma jaca DESVENTRADA, observando as moscas e larvas aninhadas na polpa amarela."

Se vocês já viram uma jaca espatifada no chão, como eu vi, essa imagem terá, para vocês, cheiro, cor e consistência. Consigo visualizar as tripas escapando da fruta abdominosa. A prosa de Milton Hatoum tem essa grande qualidade de formar na mente do leitor imagens que, de tão vivas, parecem materializar-se.

PdL
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*PS: O autor faz coincidir claramente a morte do poeta Antenor Laval com o Golpe e a morte de Halim com 1968 e o endurecimento do regime. A morte do primeiro é a derrocada do poético e do espírito livre; a do segundo talvez signifique o desaparecimento dos limites mínimos, da ponderação ou até de Deus, pois "Halim" é um dos 99 nomes do deus muçulmano.

2 comentários:

  1. Estou seguindo a mesma rota que vc, Raimundo. Meu primeiro do Hatoum foi "Dois Irmãos", se tornou um dos meus livros oreferidos da vida. E o próximo será "Cinzas do Norte".
    Não me lembro de ter lido "Esaú e Jacó", vou por aqui na lista!
    Qdo leio uma obra dessas fico triste como tem gente que diz não gostar ou não valoriza a literatura nacional. Mais triste ainda em saber que a maioria formou essa opinião apenas com as leituras obrigatórias do colégio/vestibular.
    Enquanto lá fora autores como o Hatoum, Jorge Amado, entre outros, são bem conceituados, o Brasil fica importando John Green, Nicholas Sparks e cia.

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    1. Gostei mais de "Dois irmãos", mas houve gente do clube que preferiu "Cinzas do Norte". Vale a pena ler ambos, eu acho. "Esaú e Jacó" é imperdível, não deixe de ler, assim que puder. Também lamento que as pessoas pelo Instagram não variem o cardápio e comam somente John Green, Sparks e quejandos. De qualquer forma, acredito que é melhor ler isso do que nada e tenho esperança de que, por meio desses autores, muita gente descubra os maiores.

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