O alumbramento com a paisagem
"Voltava sozinho da escola. A estrada, um ermo completo. De barulho, só mesmo o das cigarras e das lagartixas nas folhas secas. Pensava então em muita cousa. Via pelos partidos o vento dobrando a folha da cana. Os pendões floriam pelo meio. Era um mau sinal. Cana de pendão não prestava, amadurecia antes de tempo."
(Cana-de-açúcar em pendão)
"O Sol das seis horas tocava nas coisas com mão de veludo. Acariciava. Os jardins tinham cores magníficas para mostrar."
"- Que lua bonita! - diziam elas olhando a lua com orgulho.
Eles ali também tinham lua. Era mesmo que barriga cheia."
Vida social
"Os protestantes falavam dos padres e de Nossa Senhora, e na casa de uma preta velha a polícia de vez em quando ia por lá buscar gente na corda. Fazia-se por lá feitiçaria."
"Havia muita briga de marido e mulher. E por causa de cousas pequenas. O jogo do bicho era sempre motivo dos maiores. O jantar não prestava, era pouco:
- Em que diabo gastaste o dinheiro, mulher? Está jogando no bicho outra vez, hein, cachorra?
E o bofete cantava no toitiço. Elas também não ficavam quietas, como leva-pancadas. Investiam. Os meninos choravam na porta de casa, num berreiro de saída de enterro. E o braço vadiando dentro de casa, os dentes da mãe no cangote do pai, os troços se quebrando. O povo acudia, desempatava o casal, a mulher chorando, de sangue correndo pelas ventas, e o homem bufando:
- Esta burra pensa que faz o que quer!
Os outros se chegavam para ele, acomodavam. E a mulher ia para a cama chorar, fazer dormir os meninos pequenos. Nesta noite o marido dormia debaixo da mangueira, com as estrelas no céu e o vento bom para acalentar o sono de um justo. De manhã a mulher preparava o café com pão crioulo. Ele saía de casa com a cara feia, mas se não tivesse gênio, de noite chegaria com a cara alegre. E a mulher passaria uma semana sem jogar no bicho. E quase sempre um filho novo aparecia de tudo isso."
"O que aprendeu num ano que passou na escola, nada lhe valia. Deu somente para lhe abrir uma brecha para o mundo, para a vida. Ninguém passaria por aquela brecha tão estreita."
"Eram bons companheiros, os caranguejos. Viviam deles, roíam-lhes as patas, comiam-lhes as vísceras amargas. Cozinhavam nas panelas de barro, e os goiamuns de olhos azuis, magros que só tinham o casco, enchiam a barriga deles. Morar na beira do mangue só tinha esta vantagem: os caranguejos. Com o primeiro trovão que estourava, saíam doidos dos buracos, enchiam as casas com o susto. Os meninos pegavam os fugitivos e quando havia de sobra encangavam para vender. Para isto andavam de noite na lama com lamparina acesa na perseguição. Caranguejo ali era mesmo que vaca leiteira, sustentava o povo."
(Catador de caranguejo)
A sensibilidade de Ricardo
"Coração feito mais de carne do que os dos outros. Nele qualquer coisa doía, feria fundo."
"A dor ainda não se comunicara ao que ele tinha de vivo. O coração do negro permanecia com o seu baticum, mas batia dentro de uma caixa como qualquer outra."
O Carnaval
("Frevo", de Pierre Verger)
"O Carnaval era para aquela gente uma libertação. Podiam passar fome, podiam aguentar o diabo da vida, mas no Carnaval se espedaçavam de brincar."
"Se eles tivessem uma Isaura, só cuidariam dela. A negra era falante. Falava como as brancas do Santa Rosa, usava sapatos de salto alto, lia o jornal. Um assombro para o moleque embeiçado. No seu quarto pregara o retrato dela na parede, de pega-rapaz caindo pela testa, de olhos quebrados. Isaura. O nome entrava-lhe pelos ouvidos com recordações antigas."
"Os clubes e os blocos quando passavam, parava tudo que era carro e automóvel. Os cabras quebravam na frente numa impetuosidade de furiosos. As pernas entravam umas por dentro das outras, depois ficavam com a bunda quase que rente ao chão e as mulheres sacudiam para frente tudo que tinham de bom. E peitos e ventres que pouco ligavam à surra das umbigadas. Era uma alegria que atingia os últimos recursos. De repente paravam. A orquestra se calava. Esperava-se então que rompesse o fogo outra vez para que eles pudessem se despedaçar:
- Música! música! - gritavam."
"Verdade no Carnaval não ofendia a ninguém."
"Na rua da Concórdia houve rolo dos Toureiros com os Vassourinhas. A faca botou barriga de gente abaixo. Um automóvel esbagoara um menino do Bloco das Flores. Mas ninguém parava para ver."
A morte na vizinhança
"Dentro da casa as mulheres rezavam em voz alta. A reza saía pelo nariz e era triste de verdade."
"A casa se enchera de espectadores para ver o drama mais representado deste mundo e o mais inédito para todo o mundo. A casa se enchera para ver Odete morrer."
"O cheiro de incenso e o canto das negras davam sinais de eternidade à casa pobre de seu Abílio."
"E quase sempre um filho novo aparecia de tudo isso." Mto bom! Rs
ResponderExcluir"O Carnaval era para aquela gente uma libertação. Podiam passar fome, podiam aguentar o diabo da vida, mas no Carnaval se espedaçavam de brincar."
ResponderExcluirLembrei dos moradores das periferias de Recife. Aguentam o diabo, mas brincam o carnaval.
Raquel, você foi a terceira comentadora do blog, portanto tem direito de escolher um marcador e um cartão. De fato, boa parte do livro é ambientada na periferia do Recife. Vale muito a pena a leitura.
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