Sigo lendo Harry Potter e a Câmara Secreta na versão em inglês, entre outras leituras paralelas. Deparo com o termo "scallywag" e lembro-me de que o projeto que originou este blog estava relacionado a palavras pouco comuns que são encontradas especialmente em textos literários.
No enredo, Harry perdeu o trem para o reinício do período letivo em Hogwarts e, com o amigo de todas horas Rony, chegou à escola de bruxos, de forma catastrófica, em um carro enfeitiçado para voar, pertencente ao pai do amigo. Desesperados por não conseguirem atravessar a parede para a plataforma 9 3/4, não lhes ocorrera outro meio para alcançar o destino e evitar a perda das aulas. Como punição, a dupla recebeu tarefas, e a de Harry foi ajudar o professor Lockhart, uma celebridade afetada e deslumbrada com a fama, a responder a cartas de fãs.
Harry não vai com a cara de Lockhart, que parece desgostoso com o fato de que o garoto detém fama superior à sua. Desde o começo do segundo volume, Lockhart apresenta-se como o antagonista de Potter. Em uma cena anterior ao retorno a Hogwarts, quando comprava os livros para o segundo ano, Harry e os amigos veem-se em meio a uma fila quilométrica de uma sessão de autógrafos de Lockhart. Na ocasião, o autor e futuro professor convoca o bruxo mirim famoso a posar para uma foto consigo. A partir daí, até a passagem em que parei, Lockhart aborda Potter sempre pondo em questão a fama de ambos, o que não apetece nem um pouco ao adolescente.
Quando Harry chega à sala de Lockhart para pagar sua penitência, este recebe-o com o qualificativo "scallywag". Soa falso e artificial, condizente com a caracterização de Lockhart. A definição de "scallywag" no Cambridge Dictionary não me despertou qualquer termo equivalente em meu cabedal português. No verbete correspondente à palavra, estava escrito:
"someone, especially a child, who has behaved badly but who is still liked." (pessoa, especialmente uma criança, que, embora se tenha comportado mal, ainda é estimada)
A definição do dicionário do Kindle foi bem parecida:
"a person, typically a child, who behaves badly but in an amusing mischievous rather than harmful way". (pessoa, comumente uma criança, que se comporta mal, porém de maneira mais arteira do que prejudicial)
Não me ocorreu, em português, um termo correspondente à perfeição. Seria "levado" ou "traquinas"? O Dicionário Houaiss define esses sinônimos como a qualidade de alguém buliçoso, inquieto e travesso. Não remete necessariamente a crianças, não indica que se trata de mal comportamento, tampouco inclui uma expressão de estima pelo indivíduo inquieto. O Google Tradutor sugeriu "biltre", "mandrião" e "valdevinos", todos termos de uso muito pouco corrente, os quais, por isso mesmo, agradou-me bastante encontrar, dentro do espírito de espanar a poeira das palavras menos vagabundas da língua.
Das três, "biltre" é a que mais ouvi e vi. Diz-se de alguém que age de forma vil, do canalha, do infame. Não é o caso de Potter, na cena supracitada, nem corresponde bem às definições de "scallywag", com conotação mais positiva do que negativa. Segundo Houaiss, "biltre" veio do francês "bélître", que significa "mendigo" ou "homem de pouco valor". Aí se revela, como é comum em todo estudo diacrônico da língua, como o processo de transformação dos significados embute os preconceitos sociais: nem todo mendigo é infame ou canalha, porém, ao que parece, nesse caso, o valor do homem foi confundido com os valores monetários de que ele carecia.
Não me lembro de ter deparado com a palavra "mandrião" na vida. Na consulta ao dicionário sobre seu significado, descobri o verbo "mandriar" e o substantivo feminino correspondente, "mandriona". Simpatizei com a ideia do verbo: "não trabalhar ou estudar por preguiça; viver como mandrião; embromar, mandrianar, mandrionar". Não sou um tipo mandrião, mas resisto à atual tirania do utilitarismo e da maximização do tempo para fins quase sempre alheios à felicidade livre de cada um, com toda a carga subjetiva embutida aí. Nesse aspecto, o mandrião, aquele que resiste à exploração do trabalho e tenta tomar posse integralmente de seu tempo, como elemento de resistência à ordem do capitalismo selvagem, merece minha simpatia, embora não equivalha, de novo, de forma suficientemente direta, a "scallywag". Recordo aqui que vários heróis da picaresca de todos os tempos são mandriões, como é o caso de Pedro Malazarte e de João Grilo.
"Valdevinos" foi o termo mais gostoso dos que encontrei nessa busca desencadeada pela leitura de Harry Potter. No Houaiss, o vocábulo admite todas as acepções mencionadas aqui, exceto aquelas especificidades de "scallywag" já mencionadas, relativas à criança e à estima:
1 indivíduo sem ocupação, que não trabalha; vadio, vagabundo
2 indivíduo que leva vida desregrada, dissipador de seus bens; estroina, boêmio
3 indivíduo amalucado; doidivanas
4 indivíduo pobre e sem importância; joão-ninguém, pobretão, miserável
5 indivíduo que age de forma canalha; sem-vergonha, biltre, traficante
Na etimologia de "valdevinos", descobre-se que se trata de termo com origem literária. Ter-se-ia originado do nome de Balduíno, uma personagem medieval do ciclo de cavalaria ligado à figura de Carlos Magno, com ampla repercussão, por exemplo, na obra de Ariano Suassuna, criador do já citado mandrião e valdevinos João Grilo.
Eis onde pode desembocar a leitura do pop Harry Potter, quando se tem uma comichão pelo significado das palavras e um fascínio pelos meandros e pelas nuanças de pensamento e de percepção para cuja expressão elas podem servir. É no detalhe, na nuança, na especificidade, que está o sal da realidade.
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