(O texto que você vai começar a ler tem um spoiler do filme Nunca te vi, sempre te amei)
Um de meus filmes mais queridos é Nunca te vi, sempre te amei, com Anthony Hopkins e Anne Bancroft. Citei-o na postagem "Leitura a lápis", porque quis usar umas falas da protagonista, Helene Hanff, sobre o hábito de grifar livros, para ilustrar meu ponto de vista de que se deve meter o lápis durante a leitura. É um filme imperdível, particularmente para bibliófilos. Trago-o de volta, porque senti vontade de compartilhar um poema de Yeats recitado nele pela personagem de Anthony Hopkins. O melhor: o trecho da recitação está disponível no YouTube, e eu vou inserir aqui, seguido do texto em inglês e de uma tradução que eu fiz por minha conta e risco, tudo isso após meus comentários.
O poema de Yeats parece mais belo e pungente no contexto em que é mentalmente recitado por Frank Doel, a personagem de Hopkins, um livreiro britânico de emoções contidíssimas, pouco comunicáveis, mas emoções lindas, das mais puras. Mr. Doel e sua cliente Helene Hanff correspondem-se separados pelo Atlântico: em Nova York, ela encomenda livros como quem pede um afago; de Londres, ele lhos remete pelo serviço postal com o cuidado de quem faz um cafuné. Uma cumplicidade espiritual, uma mútua compreensão de entrelinhas e um amor assaz raro e delicado surgem paulatinamente, como gotículas de umidade que se condensam em gotas maiores, em lágrimas de orvalho, em filetes de água, até que se acham em fluxos fluviais expressivos. Ela solteirona novaiorquina, ele comportadamente casado e pai de família, nunca dizem o nome desse amor. O amor chega, sem ser anunciado.
Na cena que antecede a recitação do poema, o sub-reptício amor de Mr. Doel acende uma fantasia incomum no tipo de homem que ele é. Enquanto lia Yeats em seu escritório, ouviu uma estadunidense adentrar a livraria e passou a acompanhar, olhos vidrados, respiração suspensa, o atendimento, na esperança de que aquela fosse Helene Hanff cumprindo, finalmente, sua promessa de visitar Londres. Quem não conhece os códigos pessoais do formal Mr. Doel não ultrapassará a superfície de sua expressão fria, de homem racional. Nós, espectadores, que o conhecemos mais de perto, sabemos, sentimos, que o homem, naquele instante, é todo esperança, é todo desejo ardente de encontrar, em pessoa, o objeto de seu amor.
Após ficar emocionalmente nu diante de nós, espectadores, Frank Doel escuta que a cliente ali mora no Delaware, portanto não pode ser Helene. Suas pálpebras, finalmente, piscam, provavelmente ele volta a respirar naquele instante, contudo a decepção deve ter sido mais doída do que o sufoco que estivesse sentindo de expectativa. É depois dessa frustração que ouvimos a recitação do poema, que não é falado pela personagem, mas ouvido em off, como sendo seu pensamento.
No poema de Yeats, o ser amante almeja poder amparar as solas dos pés da pessoa amada com os mais finos e delicados tecidos do céu. Ressalte-se: o eu lírico desejaria expor o que imagina mais precioso, infinito e esplêndido como o céu, à parte mais inferior do corpo de quem ele ama, a planta do pé, de couro enrijecido e geralmente empoeirado. Daí o eu poético estabelece um contraste entre os "tecidos bordados do céu" e seus sonhos, a única coisa que, sendo ele pobre, resta-lhe ofertar à pessoa amada. Esse contraste parece-me aparente. Embora a estrutura lógica do poema leve-nos a confrontar os sonhos com os tecidos preciosíssimos do céu, creio que, metaforicamente, todos os elementos desse manto celeste podem ser atribuídos aos sonhos de alguém. No fundo, para nós mesmos, nossos sonhos, que não têm tempo nem espaço bem definidos e oscilam entre a luz da consciência e as profundezas escuras do inconsciente, são o que temos de mais vulnerável e precioso.
A imagem de estender os próprios sonhos sob os pés de alguém e, ao mesmo tempo, esperar que essa pessoa entenda e sinta a delicadeza daquele tecido onírico que se lhe foi oferecido, que aceite caminhar sobre ele, mas que o faça suave e cuidadosamente, é uma das mais belas representações do amor que eu já encontrei em minhas leituras.
HE WISHES FOR THE CLOTHES OF HEAVEN
HAD I the heavens’ embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.
***
ELE ALMEJA OS TECIDOS DO CÉU
Tivesse eu os tecidos bordados dos céus,
ornados com luz de ouro e de prata,
os tecidos azuis e turvos e escuros
da noite e do dia e da penumbra,
eu os estenderia sob teus pés:
Mas eu, pobre, só tenho meus sonhos;
Estendi meus sonhos sob teus pés;
Pisa suave, que pisas em meus sonhos.
Este filme é lindo do inicio ao fim. Os personagens passam por todas as fases de um relacionamento sem nunca se conhecer pessoalmente. Há a paixão, vem as descobertas, o frio na barriga, a amizade incondicional, as brigas, o coracao apertado, a vontade de estar junto, a perda e o amor que envolve tudo isso. É um filme para rever muitas vezes. A cada retorno encontramos mais uma lindeza despercebida.
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