31/12/2015

Retrospectiva 2015 - Goodreads

Que ano! O que mais vi, nas últimas semanas, foi gente torcendo pelo encerramento de 2015. A gente está habituado a criar explicações míticas e mágicas para os eventos, especialmente os mais drásticos, que nos ocorrem, e muitas pessoas atribuem ao ano, a seu número, a sua energia, a causa de coisas ruins. Quando se aproxima o fim dessa convenção temporal para organizar nossas vidas, quando vamos começar uma nova translação ao redor do Sol, é comum fazermos balanços, avaliarmos o que se fez, o que faltou, como executamos os planos, e o que foi realizado fora das metas. Aqui para o blog, devo fazer uma série de postagens com balanços e outras com propostas de projetos e de metas para 2016. Começo com a retrospectiva preparada pelo Goodreads, uma rede social em torno de livros na qual tenho um perfil. Também uso o Skoob, mas atualizo mais frequentemente o Goodreads.

16/12/2015

"Cangaços", de Graciliano Ramos



Cangaços é uma compilação de textos de Graciliano Ramos sobre o fenômeno social e político dos bandoleiros que assolaram de medo e semearam o imaginário da população do sertão nordestino e de todo o Brasil do século XIX até as primeiras décadas do XX.

12/12/2015

"Doidinho", de José Lins do Rego - comentários e leitura de trechos


Acabo de lançar o canal do Palavra de Literatura no YouTube. O primeiro vídeo é sobre Doidinho, de José Lins do Rego, tema da postagem imediatamente anterior a esta. 

Espero que curtam! :-)


10/12/2015

Doidinho, de José Lins do Rego


Uma das postagens mais visitadas do blog trata do romance Moleque Ricardo, de José Lins do Rego. Do ano passado para cá, decidi ler ou reler, conforme o caso, as obras do ciclo da cana de açúcar, principalmente porque pretendia travar contato com a realidade cultural, social e histórica representada nelas, para subsidiar um projeto de pesquisa pessoal. Para concluir a empreitada, falta a releitura de Fogo morto, considerado a obra-prima do autor. Também incluí, de lambuja, depois de iniciado o miniplano de leituras, as obras do ciclo do cangaço (Cangaceiros e Pedra bonita) e Meus verdes anos, de memórias.
Vi, em minha visita corriqueira à loja da Amazon em busca das promoções de e-books do dia, que Doidinho, segundo romance do mencionado ciclo, estava em promoção. Resolvi avisar da oportunidade às leitoras* do blog e aproveitar, para comentar o livro, lido antes de que existisse o Palavra de Literatura.

03/12/2015

Mestrado em Literatura na UnB

Ontem saiu o resultado final da seleção do Mestrado em Literatura da Universidade de Brasília, e este que vos escreve foi aprovado e ficou muito contentinho. Estou entusiasmado com as possibilidades que isso vai me abrir. Devo conhecer pessoas com interesse semelhante ao meu pelo mundo literário, ganhar densidade teórica em temas relacionados a essa área e disciplinar meus estudos para produzir textos legais, que me permitam dialogar intelectualmente com outros estudiosos. Fazia tempo que eu adiava a realização do desejo de incluir-me no meio acadêmico. Passadas várias etapas da vida que priorizei em detrimento do Mestrado, enfim, chegou o momento. Com isso, o Palavra de Literatura passa a ser também um diário acadêmico. Como o Mestrado é em Literatura, acredito que não fujo ao escopo do blog. :-)

30/11/2015

Fechamento da CosacNaify e de muitas portas para a esperança de beleza no Brasil dos livros

Acabo de ler que a editora CosacNaify vai fechar as portas. Matéria do Estadão com entrevista de Charles Cosac noticia que o editor e sócio tomou a decisão, porque, a ver o espírito que regeu a formação do perfil da editora ser corrompido pelas determinações de mercado, preferiu encerrar o passado da casa em um lugar seguro. Como bibliófilo e apaixonado, na exata expressão desse adjetivo, pelos livros cuidadosamente gestados pela CosacNaify, fico bem entristecido. A sensação parece com aquela de quando um grande escritor morre, e a gente fica enlutado pelos livros singularmente belos que somente ele escreveria, mas já não escreverá. É uma sensação de solidão, de restrição das possibilidades de comunicar-se, de sair de si e de encontrar outros no caminho. Quando leio um livro de autor assim - e quando tateio, cheiro e perscruto um livro da CosacNaify - sinto-me expressado, comunicado, prazerosamente fora de mim e identificado com os outros: com o escritor, com os demais leitores, com a equipe da editora que artesanou aquele volume com empenho, com desvelo e com ardil de artista que busca a melhor síntese entre forma e conteúdo. A equipe da editora demonstrava acreditar que as obras finamente selecionadas e traduzidas por eles mereciam o figurino não adequado, mas inelutável. A confluência de circunstâncias que permitiu o surgimento e a existência da CosacNaify, nos últimos vinte anos, não irá, infelizmente, repetir-se tão cedo. Que bom que aconteceu, que pena que acabará.

Rapidinhas de final de novembro

Prevejo que dezembro será um mês com fôlego nas postagens. Estive mais ausente do blog do que gostaria em novembro. Tive a seleção do Mestrado em Literatura, precisei preparar e apresentar um seminário na disciplina que curso, como aluno especial, do mesmo programa de pós-graduação, houve meu aniversário, que consome tempo na obrigação prazerosa de atender aos apelos de familiares e de amigos para comemorações, além das fogueiras de tempo de sempre: trabalho, relacionamento, amizades, visitas de gente querida a Brasília. Concluídas essas etapas, consegui terminar algumas leituras e retomar outras, agora falta comentá-las aqui.

***

O livro que mais trabalho me dará vai ser Viva o povo brasileiro. Li-o, como sabe quem acompanhou postagens recentes aqui, por causa do seminário referido no parágrafo acima. Se toda obrigação fosse assim prazerosa e transformadora, eu viveria submetido a elas. O problema para tratar desse romance de João Ubaldo Ribeiro aqui será a dificuldade de abarcar a grandiosidade desse texto. É impossível fazer jus ao todo que ele significa, e disso sobressai o desafio de fazer recortes que sejam cirúrgicos e relevantes. A seleção será muito complicada, eu provavelmente não ficarei plenamente satisfeito com o resultado, contudo é preciso fazê-la.

***

Darei notícias também sobre Cangaços. Apanhado de textos de Graciliano Ramos sobre as manifestações do cangaço, inclui crônicas, ensaios e capítulos de romances como "Vidas secas" e "Caetés". A unidade temática da coleção é reforçada por notas explicativas e contextualizadoras, e um posfácio dos organizadores sintetiza os aspectos formais e conteudísticos comuns, além de sugerir liames desses textos com a obra de Graciliano considerada globalmente. A prosa do escritor alagoano, louvada há décadas com muita razão, a meu ver, dispensa comentários e responde por boa parte do prazer proporcionado pela leitura deste volume.

10/11/2015

O que o Palavra de Literatura me tem proporcionado

O perfil no Instagram e o blog onde publico este texto mal completaram um ano. Falta pouco, mas foi muito o que esta experiência em que me lancei trouxe de bom e de novidade à vida. 
Gosto da palavra escrita desde o comecinho da adolescência. Palavra me fascina. Acho que ter um instrumento para penetrar no que pensam e sentem outras pessoas e para tentar aproximá-las do que somos, das mais valiosas nuanças do que sentimos, é mesmo algo que se poderia qualificar como divino.
A transmissão sempre será imperfeita, contudo pode-se, mesmo assim, experimentar, por meio das palavras, as delícias envolvidas em viajar para outros eus, em reconhecer fora de si algo que é intimamente familiar, em esquecer um pouco a solidão em que vivemos ilhados e meio condenados. A linguagem propicia a esperança de expandir os limites representados pelas barreiras de nosso eu.
Quando criei o Palavra de Literatura, como está explicado nas postagens iniciais, a ideia era elaborar textos sobre minhas leituras, mas com foco em palavras que chamei "de literatura", porque são incomuns, de uso pouco corrente. Essas palavras têm talento para perturbar nosso automatismo de cada dia, remexem com pensamentos e com sentimentos acomodados, talvez desorganizem uma ordem interna de marasmo e de enfado. Algo novo acontece em mim, quando deparo com uma palavra de literatura. A ideia do IG e do blog, em primeiro lugar, era salvar esses momentos luminosos e, além disso, deixá-los à disposição de quem se pudesse sentir tocado por eles comigo.
O foco das postagens expandiu-se, e boa parte dos textos virou resenhas e diários de leitura. Para mim, sem problemas. A coisa toma a forma que precisa. O que eu não poderia imaginar era que, menos de um ano depois,  conheceria tanta gente de lugares geográficos tão distantes, todavia de locais afetivos e intelectuais tão próximos. Se a internet está aí, que sirva para coisas tão boas como está sendo aproximar-me de pessoas que me deem ânimo para explorar paixões, para tocar projetos criativos, para travar contato com o novo.
Neste final de ano, com um grupo inimaginável de mulheres sensacionais, de que faço parte, orgulhoso, como o único representante dos indivíduos com cromossomo Y, serei o amigo secreto literário de uma delas. A preparação para essa troca tradicional em finais de ano está ensejando um diálogo intenso em canais como WhatsApp, Facebook e, origem de tudo, Instagram. Trocamos experiências de leitura, algo de que sinto muita falta na vida fora das redes sociais eletrônicas, e dicas sobre arte, sobre comunicação, e até sobre como assediar o tímido, admirado e charmoso escritor Daniel Galera.
Tudo que me aconteceu, até o presente, por conta do Palavra de Literatura, foi especial demais e consta da prateleira de dádivas de minha vida. Muito de intenso e até doloroso, outro tanto de inesperado e de apaziguador, tudo boa matéria-prima de vida.

09/11/2015

"Viva o povo brasileiro" - diário de leitura


Estou concentrado esta semana na leitura de Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. É um livro que estava listado havia tempos, mas cuja leitura, como a de muitos outros que mourejam aqui nas estantes de casa, esperava sem prazo. Lembro o muito que li de elogios e de recomendações sobre esse livro, especialmente de uma rara entrevista em que Marista Monte o incluía entre os seus mais estimados. Finalmente, porque é objeto principal de estudo de uma disciplina que estou cursando como aluno especial no Mestrado em Literatura da UnB, peguei-o.
Sem muito tempo agora, que a madrugada já finda, e eu tive de prolongar a vigília por causa de uma gatinha branca que adotei recentemente para fazer companhia a Homero (o gato ruivo que figura na imagem de fundo do blog), compartilho, antes de deitar, que poucos livros me proporcionaram um prazer tão grande como o que sinto ao correr as páginas de Viva o povo brasileiro. João Ubaldo tem uma prosa finíssima, ao mesmo sofisticada, rebuscada e clara. Alterna magistralmente registros os mais diversos, como frases barrocas à Antonio Vieira e o português malemolente das pessoas escravizadas no Brasil. A paleta de vocabulário dele e a forma certeira como emprega cada termo é sensacional. Prazer semelhante senti talvez com O Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, e, mais recentemente, com O Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago.
Não transcrevo agora, porque esta é para ser uma postagem curta, de minutos antes de dormir, mas logo trarei em nova postagem uns quatro trechos que me impressionaram particularmente; tanto, que tenho vontade de relê-los sempre, para o resto da vida.
João Ubaldo: depois de começar a ler Viva o povo brasileiro, quero ser ele!

Boa semana, com este entusiasmo de ler Viva o povo brasileiro!

* A gatinha a que me referi, escolhida em uma feira de adoção no sábado, aqui em Brasília, chama-se Penélope, em homenagem à personagem da Odisseia. A adaptação entre ela e Homero está em curso, eles estranham-se muito, mas já dá para notar que tendem a ficar próximos, mesmo que ainda não estejam se embolando e dormindo encangados.

07/11/2015

Satisfações de um início de novembro

Leitoras discretas, leitores silenciosos, tenho lido bastante, mas sobra pouco tecmpo para escrever. Neste mês de novembro, preciso ler a bibliografia de uma seleção de Mestrado, composta por livros teóricos da área de Literatura, os textos de uma disciplina que estou cursando como aluno especial, o romance Viva o povo brasileiro, para a mesma disciplina, além de uma monografia, a pedido de uma amiga. Na semana recém-finda, já tracei uma dissertação de Mestrado em História, porque seu autor, meu amigo, decidiu publicá-la em livro e pediu-me que escrevesse o texto da capa traseira. Fiquei bem feliz com a honraria, mas achei necessário ler o trabalho de ponta a ponta, para elaborar o melhor texto possível. 

***

Essas leituras todas, embora me agradem, têm prazos para cumprimento, o que manda para o final da fila todas aquelas que eu vinha fazendo meramente porque me deu na telha. Estão paradas Harry Potter and the Chamber of Secrets, Suicide and the Soul, Cangaços e História da morte no Ocidente. Acredito que será possível terminar todos até o final do ano, além de cumprir um pouco mais da meta de 2015, da qual me desviei bastante. Oportunamente comentarei cada livro desses, além de problematizar essa questão da meta. Foi o primeiro ano em que organizei uma com tanto detalhe, e não me frustro tanto, porque a vida já me ensinou que não é linear, e que os planejamentos devem gozar de certa flexibilidade, especialmente quando dizem respeito aos prazeres de nosso tempo livre.


28/10/2015

Harry Potter é um valdevinos? ou Harry Potter e a Câmara Secreta - diário de leitura

Sigo lendo Harry Potter e a Câmara Secreta na versão em inglês, entre outras leituras paralelas. Deparo com o termo "scallywag" e lembro-me de que o projeto que originou este blog estava relacionado a palavras pouco comuns que são encontradas especialmente em textos literários. 
No enredo, Harry perdeu o trem para o reinício do período letivo em Hogwarts e, com o amigo de todas horas Rony, chegou à escola de bruxos, de forma catastrófica, em um carro enfeitiçado para voar, pertencente ao pai do amigo. Desesperados por não conseguirem atravessar a parede para a plataforma 9 3/4, não lhes ocorrera outro meio para alcançar o destino e evitar a perda das aulas. Como punição, a dupla recebeu tarefas, e a de Harry foi ajudar o professor Lockhart, uma celebridade afetada e deslumbrada com a fama, a responder a cartas de fãs.

23/10/2015

Prêmio Jabuti 2015 - Finalistas


Foi divulgada a lista com os livros finalistas do 57.º Prêmio Jabuti, edição de 2015. Esse é o mais desejado e prestigiado prêmio do mercado editorial brasileiro e inclui várias categorias, como "Romance", "Biografia", "Poesia", "Contos e Crônicas", além de outras de natureza mais técnica, como "Direito", "Ciências da saúde", "Tradução" e "Capa".
Os prêmios exercem um grande fascínio sobre a gente, embora sejam, quase sempre, motivo de contestações e de discussões. Estou cansado de ouvir as acusações, por exemplo, contra o Oscar ou contra o Nobel, por seus alegados vieses políticos ou comerciais. No final das contas, toda eleição tem critérios, em alguma medida, arbitrários, e a longevidade do prêmio poderá ser um bom indicador da maior objetividade ou do acolhimento social de seu conjunto de critérios. O Jabuti sobrevive há 57 anos, o que não é nada mal para o Brasil.

06/10/2015

"Harry Potter e a Câmara Secreta" - Diário de Leitura 1


Comecei a ler ontem "Harry Potter e a Câmara Secreta", na versão em e-book, em inglês, que ganhei de presente via uma loja virtual chamada Pottermore Shop. Pelo que entendi, pode-se comprar um livro eletrônico da série e presentear alguém por lá. Quem recebe faz um cadastro na página web da Pottermore e escolhe por qual reader deseja receber o livro. Como o meu é Kindle, recebi pela Amazon, e meu presente foi incorporado normalmente a minha biblioteca na nuvem da Amazon.
Como mencionei antes, resolvi começar a ler a série este ano. Meus motivos e minhas metas estão listados nas postagens que fiz a respeito do primeiro da série, Harry Potter e a Pedra Filosofal. Basta clicar no marcador "Harry Potter", na lateral do blog ou logo abaixo desta postagem, para ver o que comentei antes sobre o bruxo.
Li uns 15% do segundo volume. J. K. Rowling faz uma espécie de recapitulação muito sucinta dos acontecimentos do primeiro livro, na medida ideal: não repete a ponto de enfadar e retoma o suficiente para operar a transição entre as duas obras.

29/09/2015

O dia em que comemos Maria Dulce - resenha

Li há alguns meses O dia em que comemos Maria Dulce, livro de contos de Antonio Mariano, escritor paraibano que transita entre vários gêneros, especialmente poesia e conto. Minha edição foi digital, adquirida pela Amazon e lida no Kindle. A prosa é fluida e tem momentos de poeticidade concreta, minha preferida, a lembrar as coisas de João Cabral de Melo Neto. As narrativas curtas tocam-se aqui e ali, embora não constituam um encadeamento linear. A personagem Jaílson é a que parece mais relevante, e flashes de sua vida e de suas relações aparecem ao longo da obra, porém um conto independe da leitura do outro. É uma literatura de clima, de atmosfera, de ambiência, que me pareceu muito compatível com a contemporaneidade, meio absurda, meio cotidiana, ao mesmo tempo prosaica, rasteira e irracional. Minha cotação: ***.

Trechos selecionados:

"A bondade da velha era urtiga em carne viva. Sal grosso na pele esfolada."

"Brincar me trazia a ilusão, ainda que momentânea, da felicidade."

"Ele que nunca foi de muito papo, evitava como podia o pote da comunicação."

"O Sol, como uma laranja imensa, quer nascer para todos. Conseguirá? Indiferente a tudo, porém, ele vai se elevando aos poucos, puxado por trás da parede do tempo."

"A fruta de fogo despertando a cidade com seu grito de luz e calor. Surpresa alguma. A aurora cai, de vez e já apodrecida, no colo magro na manhã que nasce."


25/09/2015

"Que horas ela volta" ou "A segunda mãe"

Fiquei feliz em ter visto um filme brasileiro assim bom como é Que horas ela volta? É muito difícil entreter a atenção, suscitar temas sociais e políticos tão difíceis quanto relevantes e, ao mesmo tempo, revestir isso em uma forma sofisticada. Trata-se de uma raridade no cinema brasileiro, e é o que se vê no novo filme da diretora pernambucana Anna Muylaert. Como grande realização artística, permite várias interpretações, e eu já li algumas muito bacanas, como a do crítico de cinema João Batista de Brito, no blog Imagens Amadas.
Algo que me despertou especialmente a atenção foram os títulos escolhidos para o filme em francês e em inglês, ambos significando mais ou menos o mesmo. Em francês, "La séconde mère", e, em inglês, "The second mother", isto é, "A segunda mãe". Note-se que, enquanto o título brasileiro estabelece um paralelismo entre as falas dos dois filhos, Fabinho e Jéssica, em momentos distintos da narrativa, ressaltando circunstâncias da ação, os dois títulos estrangeiros mencionados optam por realçar a posição da protagonista, Val, encarnada por Regina Casé.
As reintitulações de filmes para distribuição em mercados de língua diferente daquela em que foram produzidos, por mais comercial que seja seu critério, são sempre uma opção interpretativa da obra. O título brasileiro aponta para a ausência das duas mães, a da patroa e a da empregada doméstica. Assistir ao filme à luz desse título convida a uma comparação entre as situações delas: Bárbara está fisicamente próxima ao filho, mas é sentida por ele como ausente ou distante, seja por razões de personalidade, seja pelas obrigações de uma mulher de sua classe social no tempo histórico que vive; Val está longe da filha pela convicção de que esse sacrifício da proximidade afetiva seria necessário para garantir à menina conforto e um futuro melhor. Em ambos os casos, há uma imbricação entre as esferas social e subjetiva das vidas dessas mães, a qual suscitaria várias questões sobre o lugar da mulher, sobre diferenças sociais e regionais etc., tudo isso muito bem plasmado e sintetizado na tela.
Os títulos em francês e em inglês privilegiam o ponto de vista da personagem Val. Ela é segunda mãe em muitos sentidos na trama, e esses sentidos são especialmente significativos pelo fato de ela ser a única personagem que cresce ou muda entre o começo e o final do filme, conforme apontou o crítico João Batista de Brito, citado no primeiro parágrafo. Bárbara, Jéssica, Fabinho e Carlos movem-se no tempo de tela, mas terminam praticamente igual a si mesmos no começo. Val é a única que passa por um movimento interior, transformada por uma espécie de epifania, que ela mal consegue verbalizar e é simbolizada por sua transgressão de entrar na piscina dos patrões à noite, às escondidas. Ao verificar o êxito da filha, Val perde medos, amplia horizontes, atreve-se em coragem esperançosa. A medida do possível alargara-se em sua mundivisão.
Val é segunda mãe de Fabinho, a quem dedica uma afetividade generosa que vai além de suas obrigações decorrentes do contrato de trabalho com aquela família. A personagem de Regina Casé também é, por anos, a segunda mãe de Jéssica, a mãe que exerce função provedora material, porque não lhe foi possível atuar simultaneamente como provedora material e afetiva. Após a transformação ocorrida no final do filme, em um momento de reconciliação com a filha e consigo, com sua dignidade, Val será tanto a segunda mãe do neto, aquela que permitirá que sua filha continue sua trajetória de superação social, como será, agora em outro sentido, uma segunda mãe para Jéssica, segunda em relação à primeira que ela mesma foi.
Diferentemente do ocorrido a Jéssica e a Fabinho, o neto de Val estará próximo à mãe e, nas horas em que isso não for possível, receberá o cuidado de alguém ligada à mãe por um vínculo sagrado, simbolicamente significativo, por lealdade familiar, não por favor ou por contrato de trabalho. Acontece como que uma reconciliação do aspecto familiar para essas nordestinas separadas pelas adversidades sociais.
Que horas ela volta? ou La séconde mère é um filme composto por vários filmes, e é isso que o torna uma grande obra de arte. Cada ponta dele pode ser desfiada e originar uma infinidade de questões, de formas e de sentidos. Para cada recorte, poderia haver um novo título, com mais um novelo interpretativo. 

17/09/2015

A conquista da felicidade - resenha

Terminei de ler, ainda com fastio, A conquista da felicidade, sobre o qual adiantei algumas impressões em postagem anterior, apresentada como diário de leitura. Infelizmente, não foi uma leitura feliz para mim. Apesar das meras 155 páginas, arrastei-me por elas com obstinação, sem prazer. As passagens melhores do livro não valem o tempo investido na travessia.
Além do que mencionei no diário de leitura sobre trechos com marcas preconceituosas inerentes à época em que foi publicado originalmente, 1930, um problema grave do livro parece-me ser o esquematismo, o simplismo e a superficialidade na abordagem dos assuntos afetos à felicidade. O autor previne o leitor de que seu objetivo é compartilhar comentários e conselhos inspirados no senso comum que aumentaram sua felicidade, sempre que se pautou por eles. Por mais que eu concorde com a maioria das prescrições, por mais que eu consiga aplicá-las facilmente, Russell apresenta-as como se sua adoção fosse uma mera questão de força de vontade, e, desta vez por minha experiência, pouca, com as pessoas, sei que não é assim. Se fosse, o mundo estaria repleto de gente radiante de felicidade.
Quando diz que se inspirará no senso comum, Russell, pelo menos, é sincero. Os eixos de cada capítulo da segunda parte, intitulada "Causas da felicidade", podem, quase sempre, ser encontrados em algum dito popular e não o ultrapassam, embora sejam apresentados em linguagem culta e com aparência profundidade. Fazer o bem, sem esperar nada imediatamente de volta. "Gostar de muitas pessoas espontaneamente e sem esforço". Ter interesses os mais amplos possíveis e sentir entusiasmo. Alimentar a autoestima, porém não exagerar. Trabalhar para prevenir o tédio e sentir orgulho do que faz. Eis alguns núcleos de capítulos, expostos de forma banal, sem problematização convincente sobre os obstáculos para alcançar e incorporar essas máximas à vida.
Um capítulo não tão ruim é o que trata da necessidade de equilíbrio entre esforço e resignação. Russell alude à disputa entre esses dois pólos, ao longo da história, como receita para a vida feliz: algumas correntes filosófico-religiosas recomendam passividade e conformação, ao passo que outras prescrevem uma luta indômita pelo que se deseja. É interessante problematizar esses extremos, porque difícil discernir, em várias etapas da vida, quando abandonar um sonho é sinal de sabedoria e de autoconhecimento ou de fraqueza, de pusilanimidade, de preguiça. Esse capítulo contém também frases muito boas, com imagens pouco usuais ao longo do restante do texto:

Exceto em raríssimos casos, a felicidade não é algo que nos venha à boca, como uma fruta madura, por uma simples concorrência de circunstâncias propícias.
(...) para a maioria dos homens e mulheres, a felicidade precisa ser uma conquista e não uma dádiva dos deuses;
As únicas pessoas totalmente indiferentes ao poder são as que mostram completa indiferença em relação ao próximo. 
Acredito que toda pessoa civilizada, homem ou mulher, tem uma imagem de si e sente-se incomodada quando acontece algo que parece empaná-la. O melhor remédio é não ter só uma imagem, mas uma galeria delas, e selecionar a mais adequada para o incidente em questão. Se alguns dos retratos são um pouco ridículos, e daí?, não é nada prudente nos vermos durante todo o tempo como heróis de tragédia clássica.
Lamentavelmente, os excertos citados não são a regra. Grande parte do livro é banal quanto à linguagem, é árido de metáforas e de símiles, elementos que não devem ser exclusivos da prosa ficcional. O texto não inspira, não deleita, não diverte, não faz felizes as horas do leitor, o que torna menos convincentes os fracos argumentos de fundo sobre a felicidade. Terminá-lo foi uma conquista, e a felicidade resultante foi mínima. (2/5 estrelas)

11/09/2015

A diplomacia no "Memorial de Aires"

Nosso mito literário.

A releitura recente do Memorial de Aires tem rendido uma série de postagens. Na primeira delas, estabeleci uma espécie de programa, de que o presente texto é um cumprimento parcial. Entre o surgimento da ideia desta postagem e sua execução, ocorreu que li um texto crítico de John Gledson sobre o romance, e isso reconfigurou o plano inicial. Minha intenção será analisar como a caracterização do narrador como diplomata confirma a interpretação do romance proposta por John Gledson, no ensaio crítico que eu mencionei na postagem Mais "Memorial de Aires", John Gledson e a crítica literária.
O diplomata-mor brasileiro.
O narrador do romance é diplomata aposentado. Ele terminou sua atividade profissional na classe de Conselheiro, que atualmente é uma posição intermediária na carreira diplomática, formada por seis níveis, comparáveis às patentes militares ou eclesiásticas. No plano atual da diplomacia brasileira, começa-se a carreira como Terceiro-Secretário e pode-se passar a Segundo- e Primeiro-Secretário, Conselheiro, Ministro de Segunda Classe e Ministro de Primeira Classe. Na época de Aires, o cargo de Conselheiro era um dos mais altos, quando a quantidade de países soberanos era bem menor, o Brasil tinha uma presença bem mais modesta no mundo, e as relações exteriores brasileiras eram, por conseguinte, menos complexas.

10/09/2015

Postagem líder de audiência

A postagem que mais rende visitas ao blog é a sobre O moleque Ricardo, de José Lins do Rego. Certeza de que esse livro foi indicado para o vestibular de alguma universidade, ou uma rede de ensino adotou-o como paradidático. 

09/09/2015

Escritor e nacionalidade

Quando escrevi sobre valter hugo mãe aqui pela primeira vez, mencionei que ele era português. Uma amiga virtual querida, grande incentivadora de minha incursão pela obra desse autor, informou que, na verdade, ele era angolano. De fato, eu havia lido algo sobre hugo mãe ter nascido em Angola, mas fui checar: é português e nasceu em Angola. A confusão explica-se, ao menos em parte, pelo fato de o país africano ter sido colônia portuguesa até a década de 1970, e provavelmente os vínculos do autor com o território sobre o qual sua mãe o deu à luz não foram muito além do parto. Esse impasse suscitou-me uma dúvida: por que costumeiramente consideramos relevante conhecer a nacionalidade de um autor e por que Literatura e nacionalidade parecem andar de mãos dadas ao longo da história?
Se repararmos bem, o gentílico é sempre um dos primeiros adjetivos a aparecer em qualquer comentário ou sinopse biográfica relativos a um autor. Peguei cinco livros quaisquer aqui na estante. O primeiro foi Memórias do subsolo, de Dostoiévski. No primeiro parágrafo da orelha, encontrei: "No âmbito circunscrito à produção do maior romancista russo, essa narrativa (...)". O segundo foi o já resenhado aqui no blog o remorso de baltazar serapião. Também na orelha, mas, desta vez, no segundo parágrafo, encontrei sobre o autor do livro: "o escritor português valter hugo mãe, nascido em Angola, em 1971 (...)". O terceiro, só por coincidência na lusofonia, foi Venenos de Deus, remédios do Diabo, de Mia Couto. Diferentemente dos anteriores, a orelha trazia uma minibiografia do autor iniciada assim: "Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955". O quarto, da vencedora do Nobel de Literatura, repetia o padrão inicial de trazer, logo no começo da orelha, a informação sobre a autora: "os ensaios de Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, de Herta Müller, escritora alemã (...)". Por último, peguei um brasileiro, para verificar como a origem de um escritor nativo seria tratada por uma editora nacional. Em Meus verdes anos, começa assim a biografia do autor impressa na orelha traseira: "José Lins do Rego nasceu na Paraíba em 1901".
Aquelas coleções lançadas em bancas de revista reforçam a associação entre nacionalidade e literatura, organizadas em "Clássicos da Literatura Brasileira" e "Clássicos da Literatura Universal". As livrarias costumeiramente separam as obras de ficção em estantes para "Literatura Brasileira" e "Literatura estrangeira". No Ensino Médio, não estudamos simplesmente Literatura, mas, Literatura Brasileira. Por fim, nos cursos universitários de Letras, é corriqueiro os currículos contarem com disciplinas literárias identificadas pela nacionalidade: Literatura Norte-Americana, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Espanhola.

A literatura como a concebemos até bem pouco tempo atrás é tributária, como vários conceitos que determinam fortemente nossa mundivisão, do momento histórico de formação dos Estados-Nação europeus. É bem difundida a relação entre a invenção da imprensa por Gutenberg, a Reforma Protestante e a tradução da Bíblia do latim para as línguas vernáculas. Em uma época sem produção audiovisual, o entretenimento, a difusão de ideias e a disseminação de representações estava atrelada ao texto escrito em línguas locais como nunca ocorrera antes.
Talvez uma boa explicação decorra do fato de que a Literatura é representação social, e as fronteiras, por longos séculos, delimitaram padrões particulares de organização social. As contradições e os traços típicos da sociedade brasileira do final do século XIX, agrário, escravagista, elitista, patrimonialista, divergiam essencialmente dos conflitos e das características que grassavam, por exemplo, na sociedade britânica da mesma época, industrializada, urbana, liberal. Sendo verdadeira essa premissa da ficção literária como representação, o contexto em que o escritor produziu a obra serviria de chave para a interpretação pelo leitor.
Retomo a questão com valter hugo mãe e pergunto-me em que medida, no caso dele e no de inúmeros escritores contemporâneos, faz diferença a nacionalidade deles atualmente. As fronteiras guardam muito de sua força, como ilustram as resistências europeias contra a onda de refugiados procedentes de áreas conflagradas no Oriente Médio, epitomada na imagem do menino sírio encontrado morto na beira da praia. Por outro lado, tornaram-se muito porosas, principalmente pela relativamente maior mobilidade e pela comunicação instantânea e de baixo custo que aproxima cultural e socialmente várias regiões do mundo. Talvez haja cada vez menos diferenças nas relações sociais dentro de cada território, e um escritor como valter hugo mãe engendra uma obra ambientada na Islândia, como a desumanização, ao passo que a brasileira Adriana Lisboa escreve Rakushisha, cuja ação transcorre quase totalmente no Japão. Resta aguardar, para verificar se e quanto o processo de globalização mitigará as diferenças e especificidades locais, regionais e nacionais na literatura.

18 dias - resenha


Aos poucos, estou tentando cumprir a agenda de postagens prometida. Depois da resenha de Harry Potter e a Pedra Filosofal, chego a um livro de não-ficção, completamente alheio ao mundo das bruxas e da fantasia de J. K. Rowling. 18 dias, conforme adiantei em texto publicado como diário de leitura, trata de política internacional, de política externa brasileira e de história recente. Minha avaliação geral dessa obra é muito positiva, e tentarei explicar os porquês nos parágrafos seguintes. Em linhas gerais, trata-se de um apanhado amplo, claro e relativamente profundo do que de relevante aconteceu nas esferas políticas externa e doméstica brasileiras dos últimos vinte anos. "Amplo", "claro" e "profundo" são qualidades de difícil convivência em uma mesma obra.

31/08/2015

"A conquista da felicidade" - Diário de leitura

Um de meus divertimentos favoritos é visitar livrarias. Aqui em Brasília, as que me proporcionam mais prazer são quaisquer uma das duas lojas da Livraria Cultura existentes na capital federal. Nelas sinto que a experiência bibliófila ainda é considerada, não se trata de mero comércio de livros. Não tem - nem poderia ter - o charme, a beleza e a singularidade de uma Shakespeare & Co ou de uma Lello, que são citadas em livros e em filmes e se transformaram em pontos turísticos, respectivamente, em Paris e no Porto, porém a Livraria Cultura consegue equilibrar bem a necessidade de lucro com a preservação de um ambiente amigável a quem tem paixão por esse secular objeto, com formato simples e funcional, carregado de mundos dentro de si.
Pois bem, esse trololó todo foi para introduzir o primeiro (e talvez único) diário de leitura de A conquista da felicidade, de Bertrand Russell, filósofo e matemático britânico que viveu na transição entre os séculos XIX e XX. A Livraria Cultura, em parceria com a editora Nova Fronteira, lançou uma série de edições em capa dura, com tratamento gráfico simpático, composta por livros, de alguma forma ou em certo sentido, clássicos. Um deles é o que comento aqui. Não o conhecia, mas a seu autor, sim. Formado que sou em Filosofia, tenho um bom livro dele sobre a história da matéria. Além disso, há outro, mais ou menos na mesma linha, que ficou razoavelmente conhecido no Brasil, o História do Pensamento Ocidental. Tendo ótimas referências de Russell, assim como da qualidade de tudo quanto envolve a Livraria Cultura, interessei-me pelo livrinho de capa dura laranja, com meras 160 páginas, sobre um assunto que não poderia ser de maior interesse: a felicidade.
Antes de adentrar o conteúdo da parte já lida até o presente, como este é um blog eminentemente sobre leitura e sobre livros, em que as escolhas e os métodos importam, devo acrescentar que A conquista da felicidade furou a fila agora, porque o clube de leitura que mantive, por alguns meses, com colegas de trabalho, foi retomado. Depois de discutirmos longamente sobre vários critérios e formarmos uma lista de obras de interesse comum, sobre as quais cada um teria poder de veto, decidimos recomeçar os trabalhos com esse. Sendo curto, e considerando as obrigações, inclusive de leitura, que todos temos, pareceu sensato não reiniciar com grandes ambições. Já me interessara pelo livro, mas o impulso decisivo foi o que venho de explicitar.
Para que se entenda minha apreciação momentânea do livro, a qual, adianto, não é boa, confesso que as expectativas eram altas. Eu estava curioso por verificar como um filósofo e matemático de envergadura intelectual razoável, cético e ateu confesso em uma época em que isso era mais socialmente impactante do que ainda é, trataria o tema da felicidade, objeto de tantos livros de autoajuda e de religião corriqueiramente banais e fáceis, lotados de clichês e de frases digeríveis, porque superficiais. Dificilmente se fala em felicidade sem uma busca de sentido para a vida fora dela.
O comentário desse diário de leitura considera os primeiros 30% do livro. Estou nos primeiros capítulos da parte I, intitulada "Causas da infelicidade". Infelizmente, o tom do autor parece sempre ser de superioridade, como se a vivência individual dele fosse referência para o resto da humanidade, sem que, para isso, demonstre ter vivido algo realmente revelador e de interesse comum. Em um dos passos mais confessionais até o presente, ele limitou-se a dizer que odiava a vida na adolescência e "estava continuamente à beira do suicídio", mas apaixonou-se pela matemática e aprendeu "a ser indiferente" a si e a suas deficiências. Falta aí a necessária minúcia para convencer-nos de que o aprendizado dele foi ilustrativo e pode ser aproveitado por todos. Como em toda narrativa, não importa tanto o quê quanto o como.
Logo nas primeiras páginas, deparei-me com juízos preconceituosos que, se, por um lado, podem ser atribuídos à época e seriam perdoáveis mesmo a pessoas de pensamento mais avançado então, por outro, dão um fastio em quem os lê atualmente e não é recompensado dessas opiniões superadas - para dizer o mínimo - por um conteúdo excepcional quanto à conquista da felicidade. Ao exemplificar como as pessoas não aproveitam a vida devidamente, Bertrand Russell vem-me com esta:
"Vez por outra, num veículo lotado, pessoas negras dão mostras de estarem se divertindo, mas despertam indignação por causa desse comportamento excêntrico e acabam caindo nas mãos da polícia devido a um fato: ficar alegre por ocasião de feriados é ilegal." 
Mais à frente, quando anuncia o objetivo do livro, diz que é sugerir uma cura (!) "para a infelicidade cotidiana normal que se abate sobre quase todas as pessoas nos países civilizados". 
Calma, que lá vem mais:

"Um homem que nunca tenha desfrutado o belo em companhia da mulher que ama não experimentou plenamente o poder mágico de que são capazes todos esses prazeres." 
"As pessoas, cuja perspectiva da vida faz com que sintam tão pouca felicidade em fazer filhos acham-se biologicamente condenadas. Não demorará muito até que sejam substituídas por algo mais alegre e festivo." 

Já nutro robustas dúvidas sobre a capacidade de Russell dizer-me algo muito relevante sobre a felicidade, até o final do livro, depois dessas pérolas. A felicidade, na opinião dele, está aparentemente vinculada a uma visão estereotipada do desenvolvimento e das pessoas de pele negra. O texto é antipaticamente indiferente às pessoas que não mantêm relação erótico-amorosa com mulheres e muito provavelmente, ao imaginar a pessoa destinatária de seu livro, não estava pensando em lésbicas, mas sim em homens heterossexuais como ele. Por último - e lembro que estou comentando pouco menos do primeiro terço da obra -, o autor relaciona idiotameante a decisão de não ter filhos a uma condenação biológica.
Acho que idealmente um livro sobre a felicidade deveria tornar o leitor feliz pelos recursos que a linguagem escrita oferece. A forma deveria participar da felicidade de que se trata. Por exemplo, pode ser lúdico, mobilizar figuras de linguagem, fazer esquecer o tempo e dar vontade de continuar lendo, como quem, por estar feliz, não nota o relógio girar. Não é o caso de A conquista da felicidade, até a parte em que parei, o que é mais grave, quando se considera que não é um livro técnico ou rigorosamente teórico.
Espero voltar com opinião mais favorável depois.

16/08/2015

Harry Potter e a Pedra Filosofal - resenha

Minha dívida de textos está tão grande, que mal sei por onde começar. Como eu disse em postagem curta recente, foram meses intensamente vividos fora do mundo virtual, com acontecimentos felizes e tristes ao extremo, os quais farão de 2015, sem dúvida, um ano inesquecível. Agora que muito da poeira baixou, que o coração está mais apaziguado, que as emoções foram mais ou menos domadas e pararam de interferir tanto na vida cotidiana, vim escrever sobre livros. Comecemos por Harry Potter e a Pedra Filosofal, que me impressionou muito positivamente, foi uma escolha inusitada para o leitor que fui até o presente e dá audiência.
Para uma pessoa bem informada com mais de 6 e menos de 40 anos na atualidade, é difícil não ter uma noção razoável do enredo do livro. O desafio de J. K. Rowling, no meu caso, seria não tanto surpreender pelo enredo, razoavelmente conhecido, mas pelos detalhes e pela forma como contasse a história. De fato, a autora tem uma imaginação detalhista e, ao mesmo tempo, consistente. À medida que avança em uma narrativa ágil e fluidamente escrita, o leitor tropeça prazerosamente em minúcias que tornam o universo fictício por ela engendrado curioso, engraçado e estimado. As regras do quadribol, o feitiço anticola, o desconto de pontos, no teste do feitiço de transformação, pelo fato de o camundongo resultar em uma caixa com bigodes, os feijõezinhos com gosto de vômito e de cera de ouvido que afastam Dumbledore de experimentá-los, tudo isso torna a experiência de leitura de Harry Potter e a Pedra Filosofal um caminho lúdico do qual ninguém quer desviar-se.
Analisando bem, o livro é construído sobre alguns clichês antigos da literatura ocidental. No final das contas, tudo que se narra é repetição e, talvez, se não for, não será lido. O que diferencia, em qualidade, uma narrativa de outra é a capacidade de manejar os clichês e dar-lhes uma roupagem nova, com uma combinação atualizada com elementos contemporâneos. Harry Potter reincorpora o mito do herói que se sente derrotado na vida e é desafiado a cumprir um destino redentor de si e dos outros. Lembra o Super-Homem, na perda dos pais, Cinderela, no tratamento humilhante recebido dos familiares que o acolheram, Aquiles e vários heróis clássicos, na expectativa de cumprir destino grandioso que lhe foi reservado pelos oráculos ou pelos feitos dos antepassados.
J. K. Rowling constrói um protagonista que é de facílima identificação com qualquer ser-humano: Harry sente-se um ninguém, vive o desamparo da ausência das pessoas que mais o amaram, não encontra saída para uma vida medíocre, mas, apesar disso, é bem comportado, gentil e bom, como quase todos achamos que somos. Ocorre a Harry o que quase todos nós gostaríamos que nos ocorresse, para livrarmo-nos daquela vida odiosa descrita no começo do parágrafo: de um mundo mágico, vem a redenção na forma de possibilidades grandiosas. Harry não é nada, todavia pode ser, segundo todos acreditam, aquele que livrará o mundo do mal supremo e merecerá o reconhecimento e a estima dos bons. É muito fácil gostar desse rapaz, e Rowling cumpre muito bem sua função de maximizar o potencial de afeto que uma personagem assim possui.
Predestinado que seja, o destino de Harry Potter não está pronto: terá de ser realizado por ele, posto em ato. Parte da concretização desse destino é narrada no primeiro livro da série de sete volumes. Nós, leitores em busca de esperança para o mundo e para nós mesmos, gostamos de ser convencidos, pelo talento da autora, de que o destino promissor dessa personagem com a qual tanto nos identificamos é viável, factível. Sentimos prazer em acompanhar o como, o passo a passo da materialização do grande futuro reservado a Potter. Não apenas a identificação com a personagem principal é fácil, mas também o seguimento dos fatos que levam a seu êxito é alentador, se bem apresentado, como o é.
A entourage de Potter também é enriquecida por tipos que tanto imantam identificação dos leitores como permitem relações e ações variadas. Dumbledore é distante pela autoridade e pela posição hierárquica, mas próximo pela ética e pela bondade. Hagrid é bonachão e ingênuo, embora seja forte e protetor. A Professora Minerva é rigorosamente justa, embora transpareça, de coração, desejar o que o leitor deseja: o êxito de Grifinória. Rony sofre, como Harry, o desafio de cumprir o êxito dos de sua família na escola de bruxos Hogwarts e, se não lhe faltou afeto, teve alguma dificuldade financeira que lhe é lançada na cara, mais de uma vez, pelo antagonista mirim Draco:

Todos esperam que eu me saia tão bem quanto os outros, mas se eu me sair bem, não será nada de mais, porque eles fizeram isso primeiro. E também não se ganha nada novo quando se tem cinco irmãos.

Hermione pareceu-me uma figura adorável de mulher que precisa ser dura e esforçar-se mais do que os homens, para garantir um reconhecimento semelhante ao que o mundo machista reserva para eles. A quebra do gelo entre ela e os dois garotos, Harry e Rony, é uma das partes mais esperadas de quem lê o primeiro volume da série, resumida no seguinte trecho: 

Há coisas que não se pode fazer junto sem acabar gostando um do outro, e derrubar um trasgo montanhês de quase quatro metros de altura é uma dessas coisas. 

Além de ser um livro protagonizado por um herói que começa na pior e, aos poucos, realiza seu destino grandioso pelos poderes que descobre ter (lembrem-se de Rocky Balboa apanhando e cambaleando, até, enfim, dar a volta por cima), Harry Potter e a Pedra Filosofal inclui bruxaria, centauros, unicórnios, dragões, duendes e uma trama policial. Se percebermos bem, são várias as revelações parciais ao longo da história: Harry descobre que é bruxo, conhece, aos poucos, o mundo das varinhas, dos caldeirões e de Hogwarts, fica sabendo da Pedra Filosofal e do plano de furtá-la, depois descobre onde e como ela foi guardada, passa pelos desafios, com a ajuda abnegada dos amigos, para chegar até a tal pedra e descobre quem é o malévolo personagem que colabora com Voldemort no plano de furto. O livro enquadra-se em mais de um gênero e mobiliza vários mitos ou arquétipos.
Quando comecei a ler, estava cheio de expectativas e tinha um objetivo bem específico, guardado só para mim, além dos que mencionei em uma postagem passada. Como a vida não é linear, as coisas que aconteceram, mencionadas na abertura deste texto, não me permitiram cumprir o objetivo específico. Talvez por isso, também, eu tenha adiado tanto este comentário. Infelizmente, a mágica não dá conta de resolver, do nada, o que nos frustra nesta realidade, no entanto, como sói ocorrer na vida, mesmo as maiores frustrações têm bons efeitos colaterais. Foi excelente travar contato com o mundo de Harry Potter, e eu estou determinado a passar pelos outros seis livros, assim que a agenda de leituras o permitir. 

12/08/2015

O que vem por aí

Comunico que estou vivo, depois de uns dois ou três meses de intensos acontecimentos que me afastaram da rotina do blog. O mais recente deles foi uma saga vivida com (contra?) a NET, que devo esmiuçar mais à frente. Anuncio que logo estarão disponíveis aqui textos sobre Harry Potter e a Pedra Filosofal, O dia em que comemos Maria Dulce, 18 dias e A menina sem estrela. Não saiam daí, que eu já volto.

15/07/2015

"Harry Potter e a Pedra Filosofal" - Diário de Leitura 1

Entre os livros que estou lendo, mencionados em postagens recentes, está, inesperadamente para mim e para alguns que me conhecem, Harry Potter e a Pedra Filosofal. Passei da metade na manhã de sábado, 11 de julho. Conheço gente de todas as idades que leram o best-seller, pessoas com interesses variados, com ambições intelectuais bem díspares também. Nunca tive vontade de ler a série, tampouco assisti, na íntegra, a qualquer um dos filmes inspirados nela.

O livro é simpático, a estória e o modo como é contada não me irritam - como imagino que ocorreria, caso tentasse ler outras obras de literatura infanto-juvenil -, mas certamente não é o tipo de escrita que mais me interessa. Resolvi ler, pelo menos, um Harry Potter, mais por interesse pelas pessoas que leram - gente demais! - do que pelo prazer que a obra me proporcionaria diretamente. 

Uma coisa que notei é que, entre o pessoal que trata de livros em redes sociais, especialmente no Instagram, a febre momentânea são as obras de John Green. Minha irmã mais nova, uma boa leitora, bem acima da média dos adolescentes com sua idade, gostou muito de Quem é você, Alasca? e de algum outro cujo título não me ocorre agora. Como a maioria dos usuários do Instagram deve ser formada por leitores dessa idade, é o que mais se vê. É meio triste, porque falta diversidade, porém isso é típico de sociedade de massa como é a nossa faz tempo. Tenho sérias dúvidas sobre se John Green será lido em vinte anos.

Com Harry Potter, parece-me ocorrer algo diferente. O livro foi febre e continua arrebanhando fãs nas novas gerações, desde 1997, quando foi lançado em inglês, há quase vinte anos. Os primeiros adolescentes que leram a estória do bruxo britânico, se tivessem seus 12 anos à época, estão na casa dos 30 no mundo anglófono. Além disso, como mencionei, a adesão ao livro e aos filmes, que ajudaram a catapultar o universo construído nessa narrativa em todas as direções geográficas e etárias, ocorreu também entre pessoas já crescidas na época e depois do lançamento. Estou no começo dos 30 e não havia tocado ainda em Harry Potter, mas meu melhor amigo, meses mais velho do que eu - faço questão de ressaltar isso, na esperança de que ele veja esta postagem um dia - leu toda a série e sempre me veio com referências das obras que me deixavam boiando, e eu tinha de pedir explicações do que se tratava: tornei-me um amigo de conversa claudicante para ele. O mesmo aconteceu em várias ocasiões, quando se falava em lançar um "avada kedavra" sobre um desafeto do dia, em "aparatar" em algum lugar ou em mandar uma coruja a alguém.

O interesse pelas pessoas que leram Harry Potter e me fez decidir correr os olhos por essas páginas pode ser desdobrado, pelo menos, de duas formas. O primeiro é o de dar o braço a torcer e encarar a realidade: pelo visto, até minha morte, os elementos do universo potteriano estarão a minha volta, e talvez o custo de oportunidade da leitura, em termos de tempo que poderia ser dedicado a outras páginas, seja muito baixo e recompensador, tendo em vista o aumento de repertório compartilhado com o resto das pessoas que me são mais próximas. Poderei, assim, entendê-las melhor e alcançar suas referências, afinal, uma das formas por meio das quais a literatura nos afeta profunda e imperceptivelmente é transformar nossa capacidade de representar o mundo, de imaginar hipóteses e possibilidades e de expressar ideias e emoções, por analogia positiva ou negativa com os eventos, os sentimentos, as possibilidades assimiladas na leitura.

O segundo desdobramento de meu interesse pelos que leram Harry Potter como justificativa para eu mesmo lê-lo é o de tentar entender o que há nessa obra que tanto fascínio exerce em gente tão díspar, ao longo de quase duas décadas. Alguma qualidade de tocar seres humanos tão diferentes deve ser reconhecida nessa narrativa. Aliás, não "alguma", mas muita, porque o livro é um fenômeno, mesmo se nos restringimos apenas a sua performance editorial. Se eu tiver algum palpite do que pode ser, comentarei aqui.

Voltarei a Harry Potter e a Pedra Filosofal em postagens futuras.

12/07/2015

"18 dias" - Diário de leitura 1

Além de A menina sem estrela, está em marcha uma leitura não-literária, 18 dias, do especialista em Política Internacional e colunista da Folha de de São Paulo Matias Spektor. O autor é um dos mais respeitados comentaristas de assuntos internacionais no Brasil. Além dele, estão entre os mais monitorados analistas Sérgio Leo, do Valor Econômico, talvez Clovis Rossi, também da Folha, Oliver Stuenkel, que mantém um blog e ensina Relações Internacionais na FGV, e Dawisson Belém Lopes, que, se não me engano, tem coluna no Estadão.

A ideia de 18 dias é bem interessante: explicitar como, nos bastidores, dois Presidentes hoje icônicos da história da nova República brasileira cooperaram, a fim de reduzir os custos de uma transição de poder para o país, por meio da construção de confiança junto ao Governo estadunidense. 

O autor organiza os capítulos em dias, como sugere o título. Cada um corresponde a um dia subsequente à eleição de Lula para a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, entre outubro e novembro de 2002. A época era de grandes incertezas, seja pelas dúvidas relacionadas à ascensão de um esquerdista à Presidência, no âmbito doméstico, seja pelas mudanças drásticas ocorridas nas relações internacionais posteriormente ao 11 de setembro de 2001.

Spektor inicia as seções com o relato sobre o dia, porém aproveita algum gancho, para desenvolver algum tema específico que predomina, até retornar, no final do bloco, ao formato de diário. Por exemplo, o dia 5 é majoritariamente sobre os desafios econômicos do país, tanto dentro quanto fora das fronteiras; o dia 6 sumariza como estava o Brasil quanto à agenda de direitos humanos internacional, por ocasião da mudança de Governo; o dia 8 é dedicado a expor os desafios e as conquistas do Governo que terminava, o de FHC, no que se refere às relações bilaterais com os Estados Unidos. E por aí vai.

Estou na metade do livro, e o que posso dizer é que consegue, até o ponto em que estou, o que todo livro de não-ficção deveria fazer idealmente: ter estrutura interessante e apresentar argumentos sólidos e bem fundamentados em linguagem cristalina. Normalmente, o que se ganha em clareza se perde em consistência e em densidade, porém esse não é o caso de 18 dias, até a metade.

Voltarei em breve, com mais impressões.

11/07/2015

"A menina sem estrela" - Diário de leitura 1

Depois que li a biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, fiquei particularmente tentado a ler a obra do biografado. O que mais me interessou não foram as peças, mas as memórias, que Nelson publicou, sob encomenda, quando já era famoso, em formato de crônicas diárias em jornais cariocas. Lembro que, quando meu irmão prestou vestibular, uma das obras indicadas para a prova de Língua Portuguesa era A menina sem estrela, justamente a que mais me interessara, após a leitura de O Anjo Pornográfico. Na época, não me interessei e, procurando o exemplar com capa cor de rosa de meu irmão, não tive êxito. Demorei a encontrar nas lojas da Livraria Cultura aqui de Brasília, as que mais frequento. Quando desisti de procurar, o livro apareceu na prateleira, e eu o comprei.

Até o presente, li uns trinta por cento do livro. Como se trata de crônicas, os capítulos são curtos, com parágrafos numerados, entre 15 e 17 por texto. Ao final, consta a data de publicação no jornal. A edição é da Nova Fronteira, com uma capa bem concebida, que evoca o suporte original do diário jornalístico.

Muitos dos assuntos abordados por Nelson Rodrigues nas crônicas são familiares para quem leu recentemente a biografia escrita por Ruy Castro: o assassinato do irmão Roberto, a morte trágica, por desabamento de um prédio, do outro irmão, a epidemia de gripe espanhola etc. A diferença é que, por excelente que seja a prosa de Ruy Castro, a de Nelson é excelente e meia. A leitura das crônicas equivale a escutar a conversa de um amigo inteligentíssimo, singularíssimo, talentosíssimo para criar imagens e para engendrar frases de efeito. As páginas vão virando imperceptivelmente. Além disso, enquanto a abordagem biográfica de Ruy Castro permanece no âmbito mais objetivo, Nelson derrama-se em subjetividade e permite-se elucubrações metafísicas e reflexões sociológicas que dão um gosto todo especial ao texto.

Voltarei ao livro mais à frente, à medida que atravessá-lo. Em postagem posterior, compartilharei alguns trechos marcantes, particularmente aqueles com as frases vivíssimas de Nelson Rodrigues.

10/07/2015

Notícias dos últimos tempos

Terminou esta semana a disciplina do Mestrado em Literatura que cursei como aluno especial, a qual decidi fazer depois de iniciado o blog. Com isso, fico com mais tempo livre, ao menos, por umas semanas, para dedicar-me ao Palavra de Literatura. Talvez me submeta à seleção do Mestrado, cujo edital já foi publicado. Se for o caso, devo desviar tempo para a elaboração de um projeto de pesquisa, para a sedução (figurativamente!) de algum orientador e para a leitura da bibliografia do edital, já publicado. Veremos.

A disciplina que concluí, de quatro créditos, chamou-se "Literatura e mobilidade" e propôs-se a estudar, essencialmente, a representação literária da mobilidade, mais especificamente, das migrações, das diásporas, do exílio etc. A bibliografia foi muito interessante, especialmente a teórica, que incluiu textos de Edward Said, Stuart Hall, Salman Rushdie, entre outros mais restritos à academia. Foi bacana especialmente porque me permitiu conjugar o gosto pela literatura e pelos temas internacionais.

Meu artigo final, correspondente a 65% da nota, foi uma análise do romance Rakushisha, da escritora carioca Adriana Lisboa. Minha ideia foi enfocar a viagem da personagem Celina ao Japão como uma metáfora para o processo de luto que ela vivenciava no plano psicológico. Um dos textos teóricos mais interessantes do curso, designado a mim para apresentação de seminário, foi justamente sobre como a escrita de viagem normalmente está vinculada a um percurso íntimo, a um desenvolvimento no âmbito interior do viajante-narrador.

Esta é a capa da edição impressa. Li em formato eletrônico, no Kindle.


Em postagem seguinte, comentarei o romance e esmiuçarei melhor a abordagem que propus. O problema é que o risco de spoiler é grande. Veremos como contorno essa dificuldade. Também devo comentar as leituras conclusas no período de ausência, bem como aquelas em curso atualmente. No primeiro grupo, estão, além do Rakushisha, O livro da dor e do amor, de psicanálise, muito aproveitado para o artigo mencionado. No segundo grupo, estão A menina sem estrela, de Nelson Rodrigues, Harry Potter e a pedra filosofal, de J. K. Rowling, e 18 dias, de Matias Spektor. 

Aguardem, mas, se demorar, podem cobrar.

27/06/2015

"Getúlio 1930-1945": aula de biografia na forma, aula de política no conteúdo.


Há quase dez dias, terminei de ler Getúlio 1930-1945: Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo, segundo livro da trilogia biográfica publicada recentemente pela Companhia das Letras, com autoria de Lira Neto. Fiquei muito empolgado com a leitura do primeiro volume, o que reforçou minha vontade de percorrer não apenas os outros dois sobre Getúlio, mas também aqueles sobre Padre Cícero e sobre José de Alencar (um amigo que me dá dicas de leitura valiosíssimas adorou a biografia de Alencar e recomendou-a faz tempo).  O Getúlio #2, recém-terminado, não foi tão instigante quanto o #1, porém, com isso, não quero dizer que não seja um livro excelente, que merece ser lido por quem gosta de história e de biografias.
Como indicado no título, o segundo volume conta a vida e o contexto histórico do Presidente Getúlio Vargas, desde que conquistou o poder por meio de um golpe, com a ajuda fundamental de forças militares, até que foi retirado da mesma posição, também pela intervenção essencial de forças militares. Lira Neto expõe com que estratégias, talentos e ardis Vargas se equilibrou em uma corda-bamba instável, para manter-se no posto presidencial. Como em qualquer biografia, em que estão em foco, eminentemente, os atos - as decisões - do biografado, é difícil não fazer constantemente juízos sobre Getúlio. 
Eu diria que Lira Neto tem uma opinião mais positiva do que negativa do objeto de sua pesquisa, o que é legítimo. Imparcialidade não se alcança aqui, muito menos na China. As contradições de Getúlio, as ambiguidades, os vaivéns nas alianças estão lá no texto, mas também estão elementos que poderiam justificar, a critério de quem o lê, cada caminho adotado. Notei que muitas justificativas ou interpretações positivas sobre a conduta de Getúlio são calçadas no depoimento de Alzira Vargas, a filha dileta do ex-Presidente, e nos diários que este manteve até quase o final de sua primeira estada no poder. No geral, o equilíbrio é muito adequado entre a exposição do que poderiam ser consideradas canalhices e trapassas e suas motivações, seja no âmbito do pragmatismo, seja no das limitações e dos equívocos pessoais, mesmo que bem-intencionados. De qualquer forma, Getúlio estava cercado de raposas, de egos, de lideranças mais ou menos reconhecidas que, à sua maneira, buscavam cavar espaço e prestígio para os interesses que representavam, inclusive, os mais pessoais: caso de José Américo de Almeida, de Góes Monteiro, de Eurico Gaspar Dutra, de Oswaldo Aranha etc.

"Dotado de hábil pragmatismo e de impressionante paciência histórica, preferia deixar suas opções políticas sempre em aberto, na expectativa de que o tempo oferecesse a oportunidade propícia para deliberações mais seguras ou até mesmo para futuras conciliações, por mais improváveis que estas aparentassem ser no momento." (pos. Kindle 288)

Getúlio Vargas detinha um tino político fora do comum. Foram 15 anos de permanência na chefia do Executivo. De 1930 a 1945, todos os aliados que ajudaram a alçá-lo à cadeira presidencial, na Revolução de 1930, saíram de cena, ou foram eclipsados, sempre que Getúlio pôde fazê-lo. Na gangorra entre aqueles que defendiam a democracia liberal e os outros que se opunham a esta como um sistema vicioso e corrupto, com referência ao período da República Velha, Vargas acenava, sugeria compromissos que não cumpria, e, no fim das contas, promoveu o que ficou conhecido como modernização conservadora da sociedade brasileira. Houve avanços trabalhistas significativos, a indústria ganhou robustez. Ironicamente, foi introduzida uma legislação eleitoral mais avançada, sob a supervisão de um tribunal próprio, porém Getúlio, supostamente por considerar que a sociedade estava imatura para eleições diretas, não a pôs em prática.

"Durante os dez dias que passou no Rio Grande do Sul, Aranha cumpriu uma extenuante maratona de compromissos políticos. Trancafiou-se com Pilla em uma reunião de mais de seis horas em Porto Alegre. Tomou um trem noturno para ir a Cachoeira conversar com Borges de Medeiros e João Neves. Voou em um pequeno Farman-Salmson de apenas dois lugares - um para o piloto, outro para o passageiro - e aterrissou em Pelotas, no aeroporto mais próximo de Pedras Altas, para uma conferência com Assis Brasil. Além disso, participou de almoços e jantares com lideranças empresariais, autoridades militares e representantes de sindicatos. Ouviu muito, falou mais ainda." (loc. Kindle 935)

A política em períodos de fragilidade constitucional, quando a unidade e o consenso nacionais são frágeis, apresenta semelhança interessante com os processos de articulação diplomática. Mesmo tendo chegado ao poder pela força, Getúlio é obrigado a negociar apoios e, para isso, envia seu Ministro Oswaldo Aranha ao Rio Grande do Sul, no intuito de arrefecer ânimos e de recuperar o apoio de sua base regional, sem a qual jamais chegaria ao comando do país. Trata-se de ponto crucial entre a passagem de Getúlio de liderança com legitimidade e com compromissos oligárquicos regionais para a situação posterior, em que sua figura pública desprende-se, em grande medida, da identidade gaúcha e passa a ser associada à brasileira. A missão de Oswaldo Aranha, mencionada na citação logo acima, assemelha-se bastante a uma missão diplomática ao exterior, quando se busca a adesão de soberanias - leia-se "países independentes" - a determinada tese, projeto ou valor. Coincidência ou não, Aranha depois seria Ministro das Relações Exteriores de reconhecido talento.
A história desses quinze anos abrange também a guerra civil de 1932, que os paulistas chamam de Revolução Constitucionalista, a Intentona Comunista, o golpe dentro do do golpe, em 1937, a barganha com os Estados Unidos pelo apoio brasileiro no contexto da Segunda Guerra Mundial e a queda de Getúlio. Além disso, há a desilusão amorosa de Vargas pelo abandono por sua amante e a interessante e saborosa relação entre o Presidente e Alzira, sua filha mais próxima, uma mulher que se enxeriu em ambiente predominantemente masculino e conquistou a confiança e a admiração do pai, como confidente e como conselheira. Como mencionei, o depoimento de Alzira em livro foi essencial para a reconstituição operada por Lira Neto.

"Pela primeira vez na história do país, um líder político buscou sua legitimação no povo, o que ajudou a cristalizar sua figura, no imaginário popular, como um aliado preferencial dos mais pobres e humildes. Ao mesmo tempo, a proibição de greves e a repressão brutal a comunistas e anarquistas minimizaram de modo progressivo a resistência histórica das organizações patronais e das elites, que também foram convocadas a se aproximar do aparelho estatal, como parcela indissolúvel de sua estrutura burocrática." (loc. Kindle 10133)

O jornalista cearense Lira Neto, talento consagrado do gênero biográfico no Brasil.


Por último, destaco, porque me interesso particularmente pelo processo de construção de biografias, o post-scriptum do autor sobre a criação de Getúlio #2. Lira Neto explica que, enquanto o desafio do primeiro volume era recuperar informações pouco conhecidas sobre a vida de Vargas antes da chegada à Presidência, a dificuldade do segundo era lidar com a caudal de informações e de estudos disponíveis acerca de um dos períodos mais pesquisados da história política brasileira. Talvez por isso, como mencionei em postagem anterior e na introdução a este texto, instigou-me mais a narrativa de Getúlio #1.

"Meu propósito, como biógrafo, foi articular o vasto pano de fundo com os aspectos da vida privada do biografado, sobrepondo cotidiano e contexto histórico, para tentar compreender de que forma essas duas dimensões interagiram e sofreram influências mútuas." (loc. Kindle 10164)

"A partir do mapeamento prévio do material depositado no CPDOC, confrontaram-se as informações obtidas nos registros particulares do biografado com a extensa bibliografia disponível (…). Mais de duas dezenas de outros arquivos foram igualmente pesquisados, no Brasil e no exterior, para compor o mosaico de dados. A leitura de periódicos de época, das mais diversas procedências e tendências políticas, contribuiu para conferir à narrativa certa polifonia de vozes, produzida pelos repórteres e analistas que então escreviam e interpretavam a história em tempo real. Charges, caricaturas, canções populares, panfletos, inquéritos policiais, filmes, fotografias e gravuras também ampararam a recomposição de época." (loc. Kindle 10175)