16/08/2015

Harry Potter e a Pedra Filosofal - resenha

Minha dívida de textos está tão grande, que mal sei por onde começar. Como eu disse em postagem curta recente, foram meses intensamente vividos fora do mundo virtual, com acontecimentos felizes e tristes ao extremo, os quais farão de 2015, sem dúvida, um ano inesquecível. Agora que muito da poeira baixou, que o coração está mais apaziguado, que as emoções foram mais ou menos domadas e pararam de interferir tanto na vida cotidiana, vim escrever sobre livros. Comecemos por Harry Potter e a Pedra Filosofal, que me impressionou muito positivamente, foi uma escolha inusitada para o leitor que fui até o presente e dá audiência.
Para uma pessoa bem informada com mais de 6 e menos de 40 anos na atualidade, é difícil não ter uma noção razoável do enredo do livro. O desafio de J. K. Rowling, no meu caso, seria não tanto surpreender pelo enredo, razoavelmente conhecido, mas pelos detalhes e pela forma como contasse a história. De fato, a autora tem uma imaginação detalhista e, ao mesmo tempo, consistente. À medida que avança em uma narrativa ágil e fluidamente escrita, o leitor tropeça prazerosamente em minúcias que tornam o universo fictício por ela engendrado curioso, engraçado e estimado. As regras do quadribol, o feitiço anticola, o desconto de pontos, no teste do feitiço de transformação, pelo fato de o camundongo resultar em uma caixa com bigodes, os feijõezinhos com gosto de vômito e de cera de ouvido que afastam Dumbledore de experimentá-los, tudo isso torna a experiência de leitura de Harry Potter e a Pedra Filosofal um caminho lúdico do qual ninguém quer desviar-se.
Analisando bem, o livro é construído sobre alguns clichês antigos da literatura ocidental. No final das contas, tudo que se narra é repetição e, talvez, se não for, não será lido. O que diferencia, em qualidade, uma narrativa de outra é a capacidade de manejar os clichês e dar-lhes uma roupagem nova, com uma combinação atualizada com elementos contemporâneos. Harry Potter reincorpora o mito do herói que se sente derrotado na vida e é desafiado a cumprir um destino redentor de si e dos outros. Lembra o Super-Homem, na perda dos pais, Cinderela, no tratamento humilhante recebido dos familiares que o acolheram, Aquiles e vários heróis clássicos, na expectativa de cumprir destino grandioso que lhe foi reservado pelos oráculos ou pelos feitos dos antepassados.
J. K. Rowling constrói um protagonista que é de facílima identificação com qualquer ser-humano: Harry sente-se um ninguém, vive o desamparo da ausência das pessoas que mais o amaram, não encontra saída para uma vida medíocre, mas, apesar disso, é bem comportado, gentil e bom, como quase todos achamos que somos. Ocorre a Harry o que quase todos nós gostaríamos que nos ocorresse, para livrarmo-nos daquela vida odiosa descrita no começo do parágrafo: de um mundo mágico, vem a redenção na forma de possibilidades grandiosas. Harry não é nada, todavia pode ser, segundo todos acreditam, aquele que livrará o mundo do mal supremo e merecerá o reconhecimento e a estima dos bons. É muito fácil gostar desse rapaz, e Rowling cumpre muito bem sua função de maximizar o potencial de afeto que uma personagem assim possui.
Predestinado que seja, o destino de Harry Potter não está pronto: terá de ser realizado por ele, posto em ato. Parte da concretização desse destino é narrada no primeiro livro da série de sete volumes. Nós, leitores em busca de esperança para o mundo e para nós mesmos, gostamos de ser convencidos, pelo talento da autora, de que o destino promissor dessa personagem com a qual tanto nos identificamos é viável, factível. Sentimos prazer em acompanhar o como, o passo a passo da materialização do grande futuro reservado a Potter. Não apenas a identificação com a personagem principal é fácil, mas também o seguimento dos fatos que levam a seu êxito é alentador, se bem apresentado, como o é.
A entourage de Potter também é enriquecida por tipos que tanto imantam identificação dos leitores como permitem relações e ações variadas. Dumbledore é distante pela autoridade e pela posição hierárquica, mas próximo pela ética e pela bondade. Hagrid é bonachão e ingênuo, embora seja forte e protetor. A Professora Minerva é rigorosamente justa, embora transpareça, de coração, desejar o que o leitor deseja: o êxito de Grifinória. Rony sofre, como Harry, o desafio de cumprir o êxito dos de sua família na escola de bruxos Hogwarts e, se não lhe faltou afeto, teve alguma dificuldade financeira que lhe é lançada na cara, mais de uma vez, pelo antagonista mirim Draco:

Todos esperam que eu me saia tão bem quanto os outros, mas se eu me sair bem, não será nada de mais, porque eles fizeram isso primeiro. E também não se ganha nada novo quando se tem cinco irmãos.

Hermione pareceu-me uma figura adorável de mulher que precisa ser dura e esforçar-se mais do que os homens, para garantir um reconhecimento semelhante ao que o mundo machista reserva para eles. A quebra do gelo entre ela e os dois garotos, Harry e Rony, é uma das partes mais esperadas de quem lê o primeiro volume da série, resumida no seguinte trecho: 

Há coisas que não se pode fazer junto sem acabar gostando um do outro, e derrubar um trasgo montanhês de quase quatro metros de altura é uma dessas coisas. 

Além de ser um livro protagonizado por um herói que começa na pior e, aos poucos, realiza seu destino grandioso pelos poderes que descobre ter (lembrem-se de Rocky Balboa apanhando e cambaleando, até, enfim, dar a volta por cima), Harry Potter e a Pedra Filosofal inclui bruxaria, centauros, unicórnios, dragões, duendes e uma trama policial. Se percebermos bem, são várias as revelações parciais ao longo da história: Harry descobre que é bruxo, conhece, aos poucos, o mundo das varinhas, dos caldeirões e de Hogwarts, fica sabendo da Pedra Filosofal e do plano de furtá-la, depois descobre onde e como ela foi guardada, passa pelos desafios, com a ajuda abnegada dos amigos, para chegar até a tal pedra e descobre quem é o malévolo personagem que colabora com Voldemort no plano de furto. O livro enquadra-se em mais de um gênero e mobiliza vários mitos ou arquétipos.
Quando comecei a ler, estava cheio de expectativas e tinha um objetivo bem específico, guardado só para mim, além dos que mencionei em uma postagem passada. Como a vida não é linear, as coisas que aconteceram, mencionadas na abertura deste texto, não me permitiram cumprir o objetivo específico. Talvez por isso, também, eu tenha adiado tanto este comentário. Infelizmente, a mágica não dá conta de resolver, do nada, o que nos frustra nesta realidade, no entanto, como sói ocorrer na vida, mesmo as maiores frustrações têm bons efeitos colaterais. Foi excelente travar contato com o mundo de Harry Potter, e eu estou determinado a passar pelos outros seis livros, assim que a agenda de leituras o permitir. 

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