29/09/2015

O dia em que comemos Maria Dulce - resenha

Li há alguns meses O dia em que comemos Maria Dulce, livro de contos de Antonio Mariano, escritor paraibano que transita entre vários gêneros, especialmente poesia e conto. Minha edição foi digital, adquirida pela Amazon e lida no Kindle. A prosa é fluida e tem momentos de poeticidade concreta, minha preferida, a lembrar as coisas de João Cabral de Melo Neto. As narrativas curtas tocam-se aqui e ali, embora não constituam um encadeamento linear. A personagem Jaílson é a que parece mais relevante, e flashes de sua vida e de suas relações aparecem ao longo da obra, porém um conto independe da leitura do outro. É uma literatura de clima, de atmosfera, de ambiência, que me pareceu muito compatível com a contemporaneidade, meio absurda, meio cotidiana, ao mesmo tempo prosaica, rasteira e irracional. Minha cotação: ***.

Trechos selecionados:

"A bondade da velha era urtiga em carne viva. Sal grosso na pele esfolada."

"Brincar me trazia a ilusão, ainda que momentânea, da felicidade."

"Ele que nunca foi de muito papo, evitava como podia o pote da comunicação."

"O Sol, como uma laranja imensa, quer nascer para todos. Conseguirá? Indiferente a tudo, porém, ele vai se elevando aos poucos, puxado por trás da parede do tempo."

"A fruta de fogo despertando a cidade com seu grito de luz e calor. Surpresa alguma. A aurora cai, de vez e já apodrecida, no colo magro na manhã que nasce."


25/09/2015

"Que horas ela volta" ou "A segunda mãe"

Fiquei feliz em ter visto um filme brasileiro assim bom como é Que horas ela volta? É muito difícil entreter a atenção, suscitar temas sociais e políticos tão difíceis quanto relevantes e, ao mesmo tempo, revestir isso em uma forma sofisticada. Trata-se de uma raridade no cinema brasileiro, e é o que se vê no novo filme da diretora pernambucana Anna Muylaert. Como grande realização artística, permite várias interpretações, e eu já li algumas muito bacanas, como a do crítico de cinema João Batista de Brito, no blog Imagens Amadas.
Algo que me despertou especialmente a atenção foram os títulos escolhidos para o filme em francês e em inglês, ambos significando mais ou menos o mesmo. Em francês, "La séconde mère", e, em inglês, "The second mother", isto é, "A segunda mãe". Note-se que, enquanto o título brasileiro estabelece um paralelismo entre as falas dos dois filhos, Fabinho e Jéssica, em momentos distintos da narrativa, ressaltando circunstâncias da ação, os dois títulos estrangeiros mencionados optam por realçar a posição da protagonista, Val, encarnada por Regina Casé.
As reintitulações de filmes para distribuição em mercados de língua diferente daquela em que foram produzidos, por mais comercial que seja seu critério, são sempre uma opção interpretativa da obra. O título brasileiro aponta para a ausência das duas mães, a da patroa e a da empregada doméstica. Assistir ao filme à luz desse título convida a uma comparação entre as situações delas: Bárbara está fisicamente próxima ao filho, mas é sentida por ele como ausente ou distante, seja por razões de personalidade, seja pelas obrigações de uma mulher de sua classe social no tempo histórico que vive; Val está longe da filha pela convicção de que esse sacrifício da proximidade afetiva seria necessário para garantir à menina conforto e um futuro melhor. Em ambos os casos, há uma imbricação entre as esferas social e subjetiva das vidas dessas mães, a qual suscitaria várias questões sobre o lugar da mulher, sobre diferenças sociais e regionais etc., tudo isso muito bem plasmado e sintetizado na tela.
Os títulos em francês e em inglês privilegiam o ponto de vista da personagem Val. Ela é segunda mãe em muitos sentidos na trama, e esses sentidos são especialmente significativos pelo fato de ela ser a única personagem que cresce ou muda entre o começo e o final do filme, conforme apontou o crítico João Batista de Brito, citado no primeiro parágrafo. Bárbara, Jéssica, Fabinho e Carlos movem-se no tempo de tela, mas terminam praticamente igual a si mesmos no começo. Val é a única que passa por um movimento interior, transformada por uma espécie de epifania, que ela mal consegue verbalizar e é simbolizada por sua transgressão de entrar na piscina dos patrões à noite, às escondidas. Ao verificar o êxito da filha, Val perde medos, amplia horizontes, atreve-se em coragem esperançosa. A medida do possível alargara-se em sua mundivisão.
Val é segunda mãe de Fabinho, a quem dedica uma afetividade generosa que vai além de suas obrigações decorrentes do contrato de trabalho com aquela família. A personagem de Regina Casé também é, por anos, a segunda mãe de Jéssica, a mãe que exerce função provedora material, porque não lhe foi possível atuar simultaneamente como provedora material e afetiva. Após a transformação ocorrida no final do filme, em um momento de reconciliação com a filha e consigo, com sua dignidade, Val será tanto a segunda mãe do neto, aquela que permitirá que sua filha continue sua trajetória de superação social, como será, agora em outro sentido, uma segunda mãe para Jéssica, segunda em relação à primeira que ela mesma foi.
Diferentemente do ocorrido a Jéssica e a Fabinho, o neto de Val estará próximo à mãe e, nas horas em que isso não for possível, receberá o cuidado de alguém ligada à mãe por um vínculo sagrado, simbolicamente significativo, por lealdade familiar, não por favor ou por contrato de trabalho. Acontece como que uma reconciliação do aspecto familiar para essas nordestinas separadas pelas adversidades sociais.
Que horas ela volta? ou La séconde mère é um filme composto por vários filmes, e é isso que o torna uma grande obra de arte. Cada ponta dele pode ser desfiada e originar uma infinidade de questões, de formas e de sentidos. Para cada recorte, poderia haver um novo título, com mais um novelo interpretativo. 

17/09/2015

A conquista da felicidade - resenha

Terminei de ler, ainda com fastio, A conquista da felicidade, sobre o qual adiantei algumas impressões em postagem anterior, apresentada como diário de leitura. Infelizmente, não foi uma leitura feliz para mim. Apesar das meras 155 páginas, arrastei-me por elas com obstinação, sem prazer. As passagens melhores do livro não valem o tempo investido na travessia.
Além do que mencionei no diário de leitura sobre trechos com marcas preconceituosas inerentes à época em que foi publicado originalmente, 1930, um problema grave do livro parece-me ser o esquematismo, o simplismo e a superficialidade na abordagem dos assuntos afetos à felicidade. O autor previne o leitor de que seu objetivo é compartilhar comentários e conselhos inspirados no senso comum que aumentaram sua felicidade, sempre que se pautou por eles. Por mais que eu concorde com a maioria das prescrições, por mais que eu consiga aplicá-las facilmente, Russell apresenta-as como se sua adoção fosse uma mera questão de força de vontade, e, desta vez por minha experiência, pouca, com as pessoas, sei que não é assim. Se fosse, o mundo estaria repleto de gente radiante de felicidade.
Quando diz que se inspirará no senso comum, Russell, pelo menos, é sincero. Os eixos de cada capítulo da segunda parte, intitulada "Causas da felicidade", podem, quase sempre, ser encontrados em algum dito popular e não o ultrapassam, embora sejam apresentados em linguagem culta e com aparência profundidade. Fazer o bem, sem esperar nada imediatamente de volta. "Gostar de muitas pessoas espontaneamente e sem esforço". Ter interesses os mais amplos possíveis e sentir entusiasmo. Alimentar a autoestima, porém não exagerar. Trabalhar para prevenir o tédio e sentir orgulho do que faz. Eis alguns núcleos de capítulos, expostos de forma banal, sem problematização convincente sobre os obstáculos para alcançar e incorporar essas máximas à vida.
Um capítulo não tão ruim é o que trata da necessidade de equilíbrio entre esforço e resignação. Russell alude à disputa entre esses dois pólos, ao longo da história, como receita para a vida feliz: algumas correntes filosófico-religiosas recomendam passividade e conformação, ao passo que outras prescrevem uma luta indômita pelo que se deseja. É interessante problematizar esses extremos, porque difícil discernir, em várias etapas da vida, quando abandonar um sonho é sinal de sabedoria e de autoconhecimento ou de fraqueza, de pusilanimidade, de preguiça. Esse capítulo contém também frases muito boas, com imagens pouco usuais ao longo do restante do texto:

Exceto em raríssimos casos, a felicidade não é algo que nos venha à boca, como uma fruta madura, por uma simples concorrência de circunstâncias propícias.
(...) para a maioria dos homens e mulheres, a felicidade precisa ser uma conquista e não uma dádiva dos deuses;
As únicas pessoas totalmente indiferentes ao poder são as que mostram completa indiferença em relação ao próximo. 
Acredito que toda pessoa civilizada, homem ou mulher, tem uma imagem de si e sente-se incomodada quando acontece algo que parece empaná-la. O melhor remédio é não ter só uma imagem, mas uma galeria delas, e selecionar a mais adequada para o incidente em questão. Se alguns dos retratos são um pouco ridículos, e daí?, não é nada prudente nos vermos durante todo o tempo como heróis de tragédia clássica.
Lamentavelmente, os excertos citados não são a regra. Grande parte do livro é banal quanto à linguagem, é árido de metáforas e de símiles, elementos que não devem ser exclusivos da prosa ficcional. O texto não inspira, não deleita, não diverte, não faz felizes as horas do leitor, o que torna menos convincentes os fracos argumentos de fundo sobre a felicidade. Terminá-lo foi uma conquista, e a felicidade resultante foi mínima. (2/5 estrelas)

11/09/2015

A diplomacia no "Memorial de Aires"

Nosso mito literário.

A releitura recente do Memorial de Aires tem rendido uma série de postagens. Na primeira delas, estabeleci uma espécie de programa, de que o presente texto é um cumprimento parcial. Entre o surgimento da ideia desta postagem e sua execução, ocorreu que li um texto crítico de John Gledson sobre o romance, e isso reconfigurou o plano inicial. Minha intenção será analisar como a caracterização do narrador como diplomata confirma a interpretação do romance proposta por John Gledson, no ensaio crítico que eu mencionei na postagem Mais "Memorial de Aires", John Gledson e a crítica literária.
O diplomata-mor brasileiro.
O narrador do romance é diplomata aposentado. Ele terminou sua atividade profissional na classe de Conselheiro, que atualmente é uma posição intermediária na carreira diplomática, formada por seis níveis, comparáveis às patentes militares ou eclesiásticas. No plano atual da diplomacia brasileira, começa-se a carreira como Terceiro-Secretário e pode-se passar a Segundo- e Primeiro-Secretário, Conselheiro, Ministro de Segunda Classe e Ministro de Primeira Classe. Na época de Aires, o cargo de Conselheiro era um dos mais altos, quando a quantidade de países soberanos era bem menor, o Brasil tinha uma presença bem mais modesta no mundo, e as relações exteriores brasileiras eram, por conseguinte, menos complexas.

10/09/2015

Postagem líder de audiência

A postagem que mais rende visitas ao blog é a sobre O moleque Ricardo, de José Lins do Rego. Certeza de que esse livro foi indicado para o vestibular de alguma universidade, ou uma rede de ensino adotou-o como paradidático. 

09/09/2015

Escritor e nacionalidade

Quando escrevi sobre valter hugo mãe aqui pela primeira vez, mencionei que ele era português. Uma amiga virtual querida, grande incentivadora de minha incursão pela obra desse autor, informou que, na verdade, ele era angolano. De fato, eu havia lido algo sobre hugo mãe ter nascido em Angola, mas fui checar: é português e nasceu em Angola. A confusão explica-se, ao menos em parte, pelo fato de o país africano ter sido colônia portuguesa até a década de 1970, e provavelmente os vínculos do autor com o território sobre o qual sua mãe o deu à luz não foram muito além do parto. Esse impasse suscitou-me uma dúvida: por que costumeiramente consideramos relevante conhecer a nacionalidade de um autor e por que Literatura e nacionalidade parecem andar de mãos dadas ao longo da história?
Se repararmos bem, o gentílico é sempre um dos primeiros adjetivos a aparecer em qualquer comentário ou sinopse biográfica relativos a um autor. Peguei cinco livros quaisquer aqui na estante. O primeiro foi Memórias do subsolo, de Dostoiévski. No primeiro parágrafo da orelha, encontrei: "No âmbito circunscrito à produção do maior romancista russo, essa narrativa (...)". O segundo foi o já resenhado aqui no blog o remorso de baltazar serapião. Também na orelha, mas, desta vez, no segundo parágrafo, encontrei sobre o autor do livro: "o escritor português valter hugo mãe, nascido em Angola, em 1971 (...)". O terceiro, só por coincidência na lusofonia, foi Venenos de Deus, remédios do Diabo, de Mia Couto. Diferentemente dos anteriores, a orelha trazia uma minibiografia do autor iniciada assim: "Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955". O quarto, da vencedora do Nobel de Literatura, repetia o padrão inicial de trazer, logo no começo da orelha, a informação sobre a autora: "os ensaios de Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, de Herta Müller, escritora alemã (...)". Por último, peguei um brasileiro, para verificar como a origem de um escritor nativo seria tratada por uma editora nacional. Em Meus verdes anos, começa assim a biografia do autor impressa na orelha traseira: "José Lins do Rego nasceu na Paraíba em 1901".
Aquelas coleções lançadas em bancas de revista reforçam a associação entre nacionalidade e literatura, organizadas em "Clássicos da Literatura Brasileira" e "Clássicos da Literatura Universal". As livrarias costumeiramente separam as obras de ficção em estantes para "Literatura Brasileira" e "Literatura estrangeira". No Ensino Médio, não estudamos simplesmente Literatura, mas, Literatura Brasileira. Por fim, nos cursos universitários de Letras, é corriqueiro os currículos contarem com disciplinas literárias identificadas pela nacionalidade: Literatura Norte-Americana, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Espanhola.

A literatura como a concebemos até bem pouco tempo atrás é tributária, como vários conceitos que determinam fortemente nossa mundivisão, do momento histórico de formação dos Estados-Nação europeus. É bem difundida a relação entre a invenção da imprensa por Gutenberg, a Reforma Protestante e a tradução da Bíblia do latim para as línguas vernáculas. Em uma época sem produção audiovisual, o entretenimento, a difusão de ideias e a disseminação de representações estava atrelada ao texto escrito em línguas locais como nunca ocorrera antes.
Talvez uma boa explicação decorra do fato de que a Literatura é representação social, e as fronteiras, por longos séculos, delimitaram padrões particulares de organização social. As contradições e os traços típicos da sociedade brasileira do final do século XIX, agrário, escravagista, elitista, patrimonialista, divergiam essencialmente dos conflitos e das características que grassavam, por exemplo, na sociedade britânica da mesma época, industrializada, urbana, liberal. Sendo verdadeira essa premissa da ficção literária como representação, o contexto em que o escritor produziu a obra serviria de chave para a interpretação pelo leitor.
Retomo a questão com valter hugo mãe e pergunto-me em que medida, no caso dele e no de inúmeros escritores contemporâneos, faz diferença a nacionalidade deles atualmente. As fronteiras guardam muito de sua força, como ilustram as resistências europeias contra a onda de refugiados procedentes de áreas conflagradas no Oriente Médio, epitomada na imagem do menino sírio encontrado morto na beira da praia. Por outro lado, tornaram-se muito porosas, principalmente pela relativamente maior mobilidade e pela comunicação instantânea e de baixo custo que aproxima cultural e socialmente várias regiões do mundo. Talvez haja cada vez menos diferenças nas relações sociais dentro de cada território, e um escritor como valter hugo mãe engendra uma obra ambientada na Islândia, como a desumanização, ao passo que a brasileira Adriana Lisboa escreve Rakushisha, cuja ação transcorre quase totalmente no Japão. Resta aguardar, para verificar se e quanto o processo de globalização mitigará as diferenças e especificidades locais, regionais e nacionais na literatura.

18 dias - resenha


Aos poucos, estou tentando cumprir a agenda de postagens prometida. Depois da resenha de Harry Potter e a Pedra Filosofal, chego a um livro de não-ficção, completamente alheio ao mundo das bruxas e da fantasia de J. K. Rowling. 18 dias, conforme adiantei em texto publicado como diário de leitura, trata de política internacional, de política externa brasileira e de história recente. Minha avaliação geral dessa obra é muito positiva, e tentarei explicar os porquês nos parágrafos seguintes. Em linhas gerais, trata-se de um apanhado amplo, claro e relativamente profundo do que de relevante aconteceu nas esferas políticas externa e doméstica brasileiras dos últimos vinte anos. "Amplo", "claro" e "profundo" são qualidades de difícil convivência em uma mesma obra.