17/04/2019

Só 30% dos brasileiros já leram um livro inteiro sem terem sido obrigados

Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 70% dos brasileiros não leram, por vontade própria, um livro inteiro. Poderiam relativizar essa constatação com a ideia de que atualmente a informação circula em formatos mais ágeis e fragmentados do que o livro. Pois bem, hoje, num trajeto de 15 minutos no ônibus rumo ao trabalho em Genebra, somente na parte de trás do veículo, havia quatro pessoas lendo livros. Não é a salvação da humanidade, nem há aí um valor intrínseco, mas a leitura de um livro ensina, entre tantas outras coisas, a integrar à existência a noção de processos complexos, encadeados, duradouros, que exigem tempo e concentração para atingir uma conclusão ou para assimilar um entendimento.

10/05/2018

Resenha: "A guerra não tem rosto de mulher", de Svetlana Alexiévitch

A guerra não tem rosto de mulher, primeiro livro que consumo da ganhadora do prêmio Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Alexiévitch, resulta de uma grande e engenhosa costura dos milhares de depoimentos de mulheres que participaram da guerra contra os nazistas pelo lado da antiga União Soviética. Insere-se bem na descrição que dela fez o comitê do Nobel, como uma "obra polifônica, um monumento do sofrimento e da coragem em nosso tempo". O título, muito chamativo e escolhido com genialidade, sintetiza bem o que se encontra no miolo.

Quando se pensa em guerra, realmente não se enxerga no rosto da entidade imaginada nenhum traço feminino. Não se cogita sequer de um rosto, este nosso emblema pessoal, outdoor de emoções e de sentimentos. Os olhos, que choram e são a janela da alma, estão no rosto, não nos braços que empunham metralhadoras e baionetas, nem nos pés que calçam botas e palmilham lamaçais, terrenos minados e corpos finados anônimos. O título escolhido por Svetlana Alexiévitch remete não apenas ao fato de as representações da guerra, onipresente fenômeno humano, serem completamente esvaziadas da participação feminina, como se essa não tivesse existido, mas também às tintas de intimidade, de sentimentos, de dramas prosaicos e quase envergonhados, como o de não poder usar um vestido, ou, durante um ataque, correr para o rio e arriscar-se, para poder lavar-se da menstruação com alguma privacidade, longe dos olhos masculinos. Esse enfoque contrasta até com o contexto em que as depoentes viveram, de preponderância do coletivo sobre o individual no mundo soviético.

Como não poderia deixar de ser, a condição feminina, com todos os seus desafios, seus traços históricos e sociais, sua racionalidade e sua sensibilidade, até seus estereótipos combatidos por parte do movimento feminista, aparece na obra com efeito impressionantemente inovador. A questão do que pode ou não pode, do que deve ou não deve ser dito sobre a guerra aflora logo no começo do livro, quando algumas mulheres relatam que os respectivos maridos quiseram ditar-lhes o que abordar. Nada de sentimentalismos, nada de cheiros, de emoções, de conflitos familiares. Vários depoimentos registram a preocupação de estar falando algo realmente relevante, mas do ponto de vista da corrente ainda majoritária de representar a guerra por meio de estratégias, de movimentações de tropas, de dados estatísticos e de heroísmos quase sempre masculinos. Se algum rosto aparecer, que seja o do general, do presidente, sempre homem.

A guerra não tem rosto de mulher ajuda a desconstruir mais esse primado do masculino nas representações políticas e sociais humanas, sem renunciar, para isso, a nenhum aspecto do feminino.

09/05/2017

15 livros e 15 livros seis anos depois

Hoje o Facebook me trouxe uma lembrança de seis anos atrás, maio de 2011. Uma brincadeira envolvendo listas. O desafio era o seguinte:

"As regras: não demore muito para pensar sobre isso. Quinze livros que você leu e que vão sempre estar com você. Liste os primeiros quinze que você lembrar em não mais do que quinze minutos. Eles não têm de estar em ordem de importância."

Depois, eu tinha de marcar quinze amigos, entre os quais o que me marcou antes, para que fizessem as respectivas listas. Os livros que pus na minha postagem foram os seguintes:

1) Odisseia - Homero
2) Ilíada - Homero
3) A República - Platão
4) Fédon - Platão
5) Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
6) Dom Casmurro - Machado de Assis
7) Vidas Secas - Graciliano Ramos
8) Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa
9) Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto
10) Édipo Rei - Sófocles
11) Prometeu acorrentado - Ésquilo
12) Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez
13) Ensaio sobre a cegueira - José Saramago
14) A festa do bode - Mario Vargas Llosa
15) Crime e castigo - Dostoiévski

Aquela sensação de estranhamento, de não reconhecimento, diante de algo que você escreveu ou grifou anos atrás me ocorreu. Às vezes, deparo com trechos sublinhados antes que não mereceriam minha atenção no momento da releitura. Pois bem: não sinto, no presente, que alguns desses livros me tenham marcado tanto e, por isso, decidi refazer o exercício com meu eu atual, talvez para não me reconhecer daqui a seis anos novamente. Lá vai:

(marquei em negrito as obras que continuaram na lista; marquei também em negrito o nome do autor, quando ele continuou na lista, mesmo que tenha alterado a obra de predileção)

1) Odisseia - Homero
2) Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
3) Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa
4) Ilíada - Homero
5) O evangelho segundo Jesus Cristo - José Saramago
6) Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto
7) Viva o povo brasileiro - João Ubaldo Ribeiro
8) Vidas secas - Graciliano Ramos
9) A festa do bode - Mario Vargas Llosa
10) Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez
11) Enquanto agonizo - William Faulkner
12) O moleque Ricardo - José Lins do Rego
13) Eu e outras poesias - Augusto dos Anjos
14) Casa-grande & senzala - Gilberto Freyre
15) Mal-estar na civilização - Sigmund Freud

Deixem nos comentários suas listas. Se tiverem feito algo semelhante anos atrás, digam-me, por favor, se algo mudou.

02/03/2017

Resenha-parágrafo: "Trópicos utópicos", de Eduardo Gianetti


A leitura é agradável como um papo sagaz sobre assunto que nos interessa afetiva e intelectualmente. Propõe-se objetivo muito instigante e promissor, investigar os limites de uma visão de futuro comum à nação brasileira que a distinguisse do resto do mundo e por meio da qual ela se inserisse na ordem global. Fez um prólogo que consome 90% do livro e não desenvolveu bem o objetivo inicial, restrito às últimas 15 páginas. A conclusão é quase nada de original, mas o livro tem a virtude de atualizar e de bem sintetizar, em linguagem sedutora, uma discussão ainda válida, embora antiga. Parece-me problemático em alguns pontos em que recorre, por exemplo, a noções como "vitalidade iorubá", "alegria tupi" e "ternura portuguesa".

09/02/2017

Por que gritamos golpe?

O tempo presente está todo eivado de fatos políticos e sociais cujos rumos não param de ultrapassar os limites do que consideramos compreensível. A eleição de um ultraconservador incendiário nos Estados Unidos, logo após os oito anos de governo do primeiro presidente negro da maior potência planetária, é exemplo internacional desse mundo em aparente desgoverno diante de nossos olhos e de nossos órgãos de compreensão. No Brasil, parte substancial do que nos foge à compreensão tem a ver com a derrocada do governo Dilma Rousseff, seguida da ascensão de um grupo formado por velhas raposas da política tradicional, apoiado por uma bancada parlamentar com discurso restritivo quanto a liberdades civis e a direitos e a garantias sociais. Uma grande mobilização popular que parecia pregar a moralização da coisa pública simplesmente desmanchou-se no ar, embora sobrem razões para acreditar que os substitutos da presidenta derrubada estão aí para, como um deles disse, estancar a sangria.

No contexto complexo que a realidade brasileira impõe a nosso entendimento, aquelas pessoas mais angustiadas com a opacidade dos fatos do mundo nacional podem encontrar no livro Por que gritamos golpe?, da editora esquerdista Boitempo, uma boa representação do que a ala contrária ao impeachment ou golpe pensa e de como narra o que aconteceu. A composição de autores é muito variada: encontram-se desde políticos menos patentemente de esquerda, como Roberto Requião e Ciro Gomes, a outros mais nitidamente identificados com a esquerda franca, como Jandira Feghali e Luíza Erundina; há a cartunista Laerte Coutinho, ativistas e militantes dos movimentos estudantil, negro, sindical, feminista; há pesquisadores acadêmicos e intelectuais, como André Singer e Michael Löwy. Embora já um pouquinho desatualizado, porque publicado no calor da disputa e antes do impedimento definitivo de Dilma Rousseff, o livro é um retrato diversificado e representativo, acho eu, do pensamento de um dos lados. Essa é sua maior virtude.

O lado fraco do livro é a densidade analítica e explicativa. Se, como eu, você procurava "insights" que permitissem enriquecer sua interpretação e seu entendimento dos meandros sociais, culturais e políticos do que os autores chamam de golpe, poderá decepcionar-se. Há textos excelentes nesse aspecto, como o do já citado André Singer, mas não ocupam, talvez, nem 20% do total de páginas. Os demais textos são panfletos convocatórios, diagnósticos repisados, interpretações superficiais, mais para mobilização e reciclagem pelos militantes, nas discussões por aí, do que para compreensão. Muitos argumentos que qualquer pessoa minimamente informada cansou de encontrar nas redes sociais e na imprensa são repetidos um tanto exaustivamente de um artigo para o outro, o que enfada a leitura. Depois da terceira vez, passam a ser sentidos como detrito, como mal necessário se você quer ter acesso a algum fato ou ponto de vista mais original contido no livro.

Consciente do que o livro oferece, ele parecerá mais ou menos valioso ao leitor, na dependência das expectativas deste. Eu considerei a leitura útil, mas, como esperava mais originalidade analítica, mais vieses aos quais não tive acesso pelos canais cotidianos, fiquei meio desalentado ao longo das páginas. Sem dúvida, porém, o livro tem sua utilidade como documento e como síntese representativa e suficientemente diversa das forças que se uniram contra a derrubada de Dilma Rousseff da presidência do Brasil.

*** três estrelas