23/03/2015

Três rapidinhas de sinal de vida

Estou de férias e, por mais que pareça contradição, faz dias que não dou as caras no Palavra de Literatura. Funciona mais ou menos assim: na semana que antecede sua saída de férias, mil e uma pendências precisam ser espanadas, mil e uma providências têm de ser tomadas, porém outras mil e uma coisas acontecem fora do planejado e atrapalham tudo.
Estou na Paraíba desde sexta-feira, e os primeiros dias são consumidos pela ânsia de muita gente que nos quer encontrar e matar as saudades. A consequência é a continuação da falta de tempo. Terminado o final de semana, vim dar notícias e explicar onde se encontra o autor do blog.

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As leituras também pararam com a movimentação descrita acima. No voo, consegui ler mais algumas dezenas de páginas de o remorso de baltazar serapião. Continuo bem empolgado com o livro, embora esteja de coração partido com a violência contra a mulher representada na obra. Vejamos como tudo se conclui.

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A exceção a essa história do atribulamento foi a leitura de um livro que sequer foi lançado ainda. Trata-se de um romance da escritora Dôra Limeira, paraibana que, até o presente, publicou apenas livros de contos. Há um dela à venda, em formato digital, na Amazon, intitulado O beijo de Deus. O romance cujos originais ela me deu para ler é todo contado a partir das cartas de uma senhora de mais de setenta anos dirigidas a um primo distante muito mais novo, com seus vinte e cinco anos. Acompanhei de perto a escritura dessa obra e fiquei bem feliz por, enfim, tê-la em mão, com um resultado tão bom. O lançamento deve ocorrer em um mês, por um selo editorial paraibano. Assim que acontecer, voltarei a tratar dele.

19/03/2015

Rapidinhas diversas

Fui aceito como aluno especial no Mestrado em Literatura da Universidade de Brasília, em duas disciplinas. Já tive aula na primeira, na terça-feira à noite. O título oficial é "Representação literária", porém o professor chamou o curso de "Literatura e mobilidade". Aos poucos, contarei detalhes. Devo usar as leituras obrigatórias como fonte de postagens também.

Material da disciplina.


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A leitura de o remorso de baltazar serapião segue em ritmo mais lento. Continuo gostando muito, embora o clima da história tenha ficado bem pesado. Deve ser a preparação para o remorso.



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No fim de semana, fui novamente à Livraria Cultura. O objetivo - ou desculpa - era comprar presente para um amigo que aniversariava. Como é historiador, escolhi para ele Conversas com historiadores brasileiros, da Editora 34, que traz entrevistas bem bacanas com os principais historiadores do país, como José Murilo de Carvalho, Emília Viotti da Costa e Evaldo Cabral de Melo. Saí de lá também com exemplares de Sejamos todos feministas, de Chimamanda Adichie, que darei de presente a minhas irmãs mais novas, com 13 e 12 anos. Se alguém acha cedo demais para essa leitura, alego que muito mais cedo o sexismo com viés masculino foi incutido nas mentes delas. A linguagem é simples e direta, então, não creio que elas terão dificuldade.

14/03/2015

Diário de Leitura: "o remorso de baltazar serapião", de Valter Hugo Mãe

Arriscado a perder a credibilidade perante as leitoras e os leitores do Palavra de Literatura, venho admitir que comecei a ler os remorsos de baltazar serapião, fora das metas de leitura para o ano e contrariamente ao que dissera em postagem recente sobre passar um período longe dos romances e próximo de livros técnicos.
Sem pretender controlar demais o que pensam de mim, alego, em meu benefício, que esse rumo indica uma personalidade flexível, o que será uma virtude, especialmente do ponto de vista da sabedoria oriental e da metáfora do bambu. Também outra virtude que se pode depreender, agora como leitor que sou, é ter emendado a leitura de outro romance de Valter Hugo Mãe, depois de não ter-me empolgado tanto o primeiro. Fica provado que sou leitor tolerante e não julgo precipitadamente os autores que me caem na mão.

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Ontem à noite, fui à Livraria Cultura do shopping Casa Park, aqui em Brasília, para flanar entre as prateleiras, como sói fazer este blogueiro. Quando circulava pelas estantes de Literatura, lembrei-me de procurar A máquina de fazer espanhóis, o próximo que pretendia ler de Valter Hugo Mãe, por indicação de minhas mais costumeiras e admiradas interlocutoras bibliófilas em redes sociais. Não o achei. Entre outros títulos do autor que constavam da prateleira, meus olhos leram o remorso de baltazar serapião, assim mesmo com as iniciais minúsculas, por opção do autor. Esse já me havia também chamado a atenção, porque gostei do nome, e a promessa dramática do remorso, sentimento tão humano, não foi menos determinante.
Como havia dito, não estava em meus planos começar essa leitura agora. Se eu fosse mais responsável, estaria ocupado com outras linhas. O livro na mão, a loja fecharia em uns vinte minutos, e minha mãe e meu padrasto esperavam-me para lanchar no Marieta do mesmo shopping. Deixara-os à mesa, com meu pedido feito e com o acordo de que me notificariam por celular, quando a salada de atum, folhas, palmito e parmesão chegasse. Premido pelo horário de fechamento da loja e pelo temor de que houvesse falha na comunicação, ainda mais porque a bateria de meu celular despedia-se de mim inclemente, terminei comprando este e mais dois livros, meio por impulso. Perversamente, não me arrependo, embora saiba que estou errado.

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Joguei tênis quase a manhã inteira, voltei para casa, tomei banho e almocei no bairro. Em casa, Homero, meu gato ruivo, e eu adormecemos na cama, ele misturado a meus pés. Quando acordei, umas três horas depois, às 18h, fiz um espresso e recobrei a consciência gradativamente. Procurei livros. À vista de o remorso de baltazar serapião, animei-me a ler as primeiras páginas, para comparar com a prosa de A desumanização. Será que realmente mudaria minha impressão? Eu queria ser convencido pelo texto de que Valter Hugo Mãe me renderia prazeres mais intensos e esperança de renovação da produção literária lusófona.
Como romance, o remorso de baltazar serapião é muito melhor, para meu gosto, do que o outro lido. Há também imagens poéticas de incrível qualidade, contudo elas estão mais adequadamente inseridas ou distribuídas em um enredo envolvente, com personagens variegados e cativantes, mais de carne e osso do que aqueles espectros islandeses que aparecem em A desumanização. Estou tão empolgado, que avancei na leitura até um ponto irreversível, em que não posso mais suspendê-la. Estou feliz por isso.

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Baltazar Serapião é o narrador da história, romance em primeira pessoa como o anterior que comentei aqui. Ele é o filho mais velho de uma família pobre que vive nas terras de Dom Afonso, de quem são como vassalos. A mãe, como a de Halla em A desumanização, é uma mulher problemática, tem o pé torto e um comportamento fora dos padrões, embora isso ainda não tenha sido esmiuçado. 
A família é conhecida com os Sarga, porque mantém uma vaca imprestável com cuidados de animal de estimação ou até de membro da família. Há boatos pelas redondezas que os filhos teriam sido gerados por Sarga, não pela esposa do pai. Isso remeteu-me a Fogo morto, de José Lins do Rego, em que há uma crendice de que o mestre José Amaro é um lobisomem que assola as noites da região. Em ambos os casos, a narrativa parece construída de forma a manter a fé das pessoas como uma versão plausível.

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Uns trechinhos:

"e lho disse assim, depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos outros.""

"era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que deus lhe desse."

"a teresa diaba era assim chamada porque fumegava das ventas quando enervada. não era mentira nem conversa das pessoas, era mesmo assim, inalava muito, bufava, encarnava-se de fúria com facilidade, assim a víamos a encher a cara de sangue como vinho dentro de uma tigela. e depois as narinas abriam-se para fumegarem como canais de vapor para alívio às caldeiras do coração."

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Desde A desumanização, notei que Valter Hugo Mãe adora o verbo "barafustar":

"era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma.""

"a minha mãe deixava de falar comigo e com o aldegundes, porque lhe saíam coisas de mulher boca fora, e barafustar, como fazia, era encher os ouvidos dos homens com ignorâncias perigosas."

"assim se fazia minha mãe, barafustando dia a dia, mas liberta das intenções de nos educar coisas inúteis ou falsas, que fizessem de nós rapazes menos homens ou simplesmente iludidos com um mundo que só as mulheres imaginavam."

"Barafustar" pode significar "debater-se" ou "espernear", "adentrar com ímpeto" ou "emburacar", "protestar" ou "brigar", "esforçar-se" ou "diligenciar" e "responder com maus modos". Tudo isso, segundo o Houaiss.

12/03/2015

Rapidinha de visita em casa

Hoje sem postagem. Visitas em casa, nada de leitura nem de escrita. Terminado o romance de Valter Hugo Mãe, provavelmente passarei um tempo dedicando-me a livros mais técnicos, o que é quase o mesmo que dizer inóspitos e pouco propícios ao perfil das postagens. Se calhar, vem algum texto sobre eles mesmo. Devo trazer algum comentário sobre conto ou poema. Há umas postagens também que estou devendo, ainda sobre o Memorial de Aires, por exemplo. Quitarei minhas pendências. Não esperem que eu desista ainda. 
Que vocês andam lendo?
Alguma sugestão de leitura para o 15 de março de domingo próximo?
Boa noite.

Diário de leitura: "A desumanização" - parte final


A autopenitência da parte 2 deste diário de leitura fez-me acordar cedo, como combinei comigo mesmo, ler 30 páginas de A desumanização e, um pouco mais tarde, aproveitar tempos livres esparsos para dar cabo das vinte páginas restantes. Com isso, encerrei a leitura de meu primeiro romance  de Valter Hugo Mãe, muito influenciado por Marcela Yoneda e por Literaterapia. A impressão que manifestei na parte 1 do diário sobre o livro confirmou-se: o autor tem talento cinco estrelas, com uma capacidade metafórica e imagética sensacional em sua escrita, mas o livro, considerado em sua inteireza, só mereceu três estrelas de minha parte (para entender melhor meus critérios com as estrelas, favor ler o segundo parágrafo desta postagem), porque achei o enredo esvaziado. Recomendo abordar esse livro não com expectativa de romance, mas como se fosse de poesia. Acho que faria uma apreciação melhor dele, se houvesse modulado minha expectativa de acordo com essa recomendação.

11/03/2015

Diário de leitura: "A desumanização" - parte 2


Hoje vou fazer uma postagem de preguiçoso, porém os leitores fingirão que não notaram, e nossa amizade seguirá firme e cordial. Não avancei na leitura de A desumanização, quando já deveria tê-la concluído. No Dia das Mulheres, preferi dedicar meu tempo a Chimamanda Adichie e a Virginia Woolf, como os dois textos do final de semana comprovam. Ontem e hoje, não encontrei forças para desgarrar-me dos lençóis e fazer minha sessão matinal de leitura, sempre com o auxílio do café, antes de aprontar-me para o dia de trabalho. Dormi vergonhosamente até o último segundo possível e atrasei minha agenda. 

10/03/2015

Rapidinha de inscrição como aluno especial

Faz tempo que nutro a vontade de fazer mestrado em Literatura, mas ora as datas de inscrição coincidem com viagens agendadas muito antecipadamente, ora fico reticente quanto a assumir obrigações de leitura e de comparecimento a aulas, depois de um longo período de vida consumido por esse tipo compromisso. Vinha pesando na balança do tempo se valeria a pena privar-me, de novo, do atual período de relativa liberdade na escolha das leituras e na destinação de meu parco tempo livre de expediente. Acabei de escrever a exposição de motivos requerida pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB para inscrição como aluno especial. Solicitarei matrícula em duas disciplinas. Aguardem cenas dos próximos capítulos.

09/03/2015

Diário de leitura: "A desumanização" - parte 1

Faz uma semana que comecei a ler A desumanização, de Valter Hugo Mãe, e nada de escrever o diário de leitura prometido. Como o livro é curtinho, tem 150 páginas, chego com o primeira postagem do diário depois de lidos dois terços do romance. Vão algumas impressões.

08/03/2015

"Mulheres e ficção", ensaio de Virginia Woolf


Como prometido na postagem passada, dedicarei alguns parágrafos a comentar o ensaio "Mulheres e ficção", escrito por Virginia Woolf e publicado em uma coletânea da Cosac Naify chamada O valor do riso. A escritora britânica publicou esse texto originalmente na revista Forum, de Nova York, em 1929, já lá se vão quase noventa anos de mudanças vertiginosas no comportamento, nos valores sociais e nas discussões sobre gênero. No ensaio, Woolf problematiza os fatores que condicionam o ato da escrita por mulheres e relaciona - para minha surpresa, mas talvez não sem fundamento - certos gêneros literários ao gênero de quem escreve.

"Sejamos todos feministas", de Chimamanda Adichie

Motivado pelo Dia Internacional da Mulher, ontem, antes de dormir, li Sejamos todos feministas, da nigeriana Chimamanda Adichie, e um ensaio de Virginia Woolf, "Mulheres e ficção", inserido na coletânea intitulada O valor do riso, publicação da Cosac Naify. Acordei há pouco, alimentei Homero, que aguarda paciente esse momento, todos os dias, deitado sobre meus pés na cama, tomei um espresso para neutralizar a melatonina circulante em minhas veias e sentei aqui para atualizar o Palavra de Literatura com um apanhado dos dois textos mencionados. Agora tratarei do primeiro texto e deixarei o segundo para uma postagem à parte.


06/03/2015

Diário de Leitura: "O Anjo Pornográfico" - parte final.

Lendo as últimas páginas da biografia de Nelson Rodrigues, com café, brownie e livros recém-comprados.

Estou imbuído da difícil missão de produzir o último texto sobre O Anjo Pornográfico. Como um princípio fundamental deste blog é escrever, custe o que custar, estou começando a dar forma à postagem final do diário de leitura da biografia de Nelson Rodrigues, sem antever um plano geral. Passei uma vista no que escrevi antes sobre o livro e tentarei guiar-me pelo que prometi: analisá-lo à luz das razões e das expectativas que me levaram a incluí-lo na lista de 2015.

05/03/2015

Rapidinha de sinal de vida

Não me esqueci de minhas obrigações blogueiras, porém a vida fora dos bits tem imperativos que me privaram do tempo necessário à escritura do último texto sobre O Anjo Pornográfico. Está em processo de criação, com mais parágrafos do que os leitores e eu gostaríamos. Sempre que posso, escrevo mais um e aproximo-me de cumprir o plano do texto. Além desse, está em estado avançado de criação uma postagem sobre os aspectos diplomáticos presentes em Memorial de Aires, que também me devo e aos leitores. Por último, começarei o diário de leitura de A desumanização, de Valter Hugo Mãe, que é riquíssimo em trechos bonitos merecedores de compartilhamento. Até domingo, vou desincumbir-me dos três textos.


03/03/2015

Rapidinha de mudança de rumos (haverá uma série)

O plano da noite era publicar logo a última parte do diário de leitura de O Anjo Pornográfico e dedicar o que sobrasse em horas e minutos a Valter Hugo Mãe e seu A desumanização. Não precisei viver muito para concluir que a vida não é linear: nem a noite. No meio do caminho tinha um bate-papo de Facebook que me jogou no colo virtual os originais de um livro cujo lançamento espero ansioso. Refiro-me ao novo rebento literário de Dôra Limeira, escritora paraibana para quem dediquei uma postagem do Palavra de Literatura no Instagram. Esqueci-me de tudo e fui matar a vontade curiosíssima. 

02/03/2015

Rapidinha de final de livro

Ontem à noite, despedi-me de O Anjo Pornográfico como se fora de uma amizade inesperada que partisse depois de nos acostumarmos com sua companhia sempre cheia de ação e de interesse, de uma beleza discreta e indubitável subjacente ao convívio. Nelson Rodrigues é uma personagem ideal de biografia, cheio de defeitos e de talentos, de paixões e de gestos generosos para além do óbvio. Cativante. Nada melhor para uma biografia arrebatadora do que uma pessoa que fez da vida uma batalha resoluta e diuturna contra a unanimidade e a corrente do comum e do normal. Essa rapidinha é o prenúncio do texto que está por vir sobre o livro de Ruy Castro.

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Ontem também comprei, na Livraria Cultura, A desumanização, do português Valter Hugo Mãe. Edição da Cosac Naify, obviamente bela. Já estou grifando alucinadamente, porque o livro é curto, mas a prosa é intensa, repleta de imagens vivíssimas. Um aperitivo:

"A minha mãe disse que era um pequeno vulcão. São as flores das mulheres. São de sangue. São de lume. Magoam. Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o que isso significava de perigo e condenação. Ser mulher, explicavam, era como ter o trabalho todo do que respeita à humanidade."

01/03/2015

Da epígrafe

Tive a ideia desta postagem faz algum tempo, antes de ler a análise de John Gledson sobre Memorial de Aires, objeto da postagem "Mais 'Memorial de Aires', John Gledson e a crítica literária". A leitura de Gledson veio bem a calhar, porque exemplifica o que eu pretendia comentar aqui sobre a importância das epígrafes para a interpretação das obras. Como o título dá sentido à leitura da obra, a epígrafe, que às vezes aparece única antes de todas as páginas, outras vezes encima o início de cada capítulo, é uma concessão de pistas do autor para o leitor. Funciona como uma chave interpretativa ou como um rastro para sabermos por onde o escritor quer que passemos.
Epígrafe é sempre um elemento de intertextualidade. Pode ser uma confissão do autor que estamos lendo sobre certa influência recebida de alguém que ele leu. Nesse caso, o livro que traz a epígrafe pode ser uma resposta contrária àquele de onde ela foi tirada ou uma confirmação e um desenvolvimento do que o autor do livro que se está lendo absorveu do outro citado nele. 
Por exemplo, no caso de Machado de Assis, que adora jogar com o leitor e traí-lo, a epígrafe pode fornecer uma pista falsa ou, talvez dizendo mais precisamente, enganadora. Pode chamar atenção para uma camada interpretativa e, com isso, ajudar a desviar a vigília acerca do que está mais embaixo. A de Memorial de Aires assume uma dimensão interessantíssima, depois de tomar-se conhecimento da proposta interpretativa de John Gledson. Lida rapidamente, ela pode ser tomada como uma referência inocente ao romance contido na trama, mas, nos detalhes e à luz da desconfiança prescrita por Gledson acerca das motivações das personagens camufladas pela pena simpática do narrador Aires, assume sua função reveladora, em estreita intimidade com toda a estrutura do enredo.
Porque fica lá no comecinho do livro, é comum que não nos lembremos da epígrafe, depois que adentramos as teias da história. Quando se trata da primeira leitura de uma obra, nossa mente costuma encontrar-se ainda naquele estado de abertura esponjosa e pouco focada, ao virarmos as primeiras páginas depois da capa e batemos o olho na frase ali inscrita como mote. Pela importância que tem para a leitura, deveríamos anotar essa frase em um filete de papel e usá-lo de marcador de página.
Como a profecia enigmática do oráculo, a epígrafe só mostra sua função e seu sentido a posteriori, quando os fatos vaticinados já ocorreram, sem dar oportunidade de intervenção modificadora a seus partícipes. Por isso, a leitura não deve ser linear e unidirecional. Em se tratando dos clássicos principalmente, dura a vida inteira e é marcada por vaivéns, sobes e desces, torvelinhos e enxurradas. E pela necessária e constante retomada daquele excerto que abre o livro, a epígrafe.

A seguir, algumas epígrafes de livros integrantes da meta de leitura deste ano:

Memorial de Aires, de Machado de Assis

"Em Lixboa, sobre lo mar,
Marcas novas mandey lavrar..."

Cantiga de Joham Zorro.

"Para veer meu amigo
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig'a preyto talhado,
Alá vou, madre."

Cantiga d'el-rei Dom Denis.

O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

"Já que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que foste instruído."

Lucas, 1, 1-4.

"Quod scripsi, scripsi."

("O que escrevi, escrevi.")

Pilatos

Crimes que abalaram a Paraíba - vol. 1, de Biu Ramos

"É inútil matar camponeses. Eles sempre viverão."

Raimundo Asfora

Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

"Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares."

João Guimarães Rosa

O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico."

Nelson Rodrigues

Caim, de José Saramago

"Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala."

(Hebreus, 11, 4)
LIVRO DOS DISPARATES

Blogs no radar: Blog da Mar

Eu já me vali de uma crônica de Marcela Yoneda, para dar seguimento a uma discussão proposta no Palavra de Literatura sobre um costume de leitura: grifar e anotar as páginas dos livros. A postagem em que compartilhei esse texto de Marcela é a segunda mais visitada do blog e só perde para uma que é um mês mais antiga. Essa minha amiga virtual tem demonstrado talento e estilo em todos os textos dela que li em seu blog, cuja leitura assídua recomendo agora, com destaque, em postagem exclusiva.