01/03/2015

Da epígrafe

Tive a ideia desta postagem faz algum tempo, antes de ler a análise de John Gledson sobre Memorial de Aires, objeto da postagem "Mais 'Memorial de Aires', John Gledson e a crítica literária". A leitura de Gledson veio bem a calhar, porque exemplifica o que eu pretendia comentar aqui sobre a importância das epígrafes para a interpretação das obras. Como o título dá sentido à leitura da obra, a epígrafe, que às vezes aparece única antes de todas as páginas, outras vezes encima o início de cada capítulo, é uma concessão de pistas do autor para o leitor. Funciona como uma chave interpretativa ou como um rastro para sabermos por onde o escritor quer que passemos.
Epígrafe é sempre um elemento de intertextualidade. Pode ser uma confissão do autor que estamos lendo sobre certa influência recebida de alguém que ele leu. Nesse caso, o livro que traz a epígrafe pode ser uma resposta contrária àquele de onde ela foi tirada ou uma confirmação e um desenvolvimento do que o autor do livro que se está lendo absorveu do outro citado nele. 
Por exemplo, no caso de Machado de Assis, que adora jogar com o leitor e traí-lo, a epígrafe pode fornecer uma pista falsa ou, talvez dizendo mais precisamente, enganadora. Pode chamar atenção para uma camada interpretativa e, com isso, ajudar a desviar a vigília acerca do que está mais embaixo. A de Memorial de Aires assume uma dimensão interessantíssima, depois de tomar-se conhecimento da proposta interpretativa de John Gledson. Lida rapidamente, ela pode ser tomada como uma referência inocente ao romance contido na trama, mas, nos detalhes e à luz da desconfiança prescrita por Gledson acerca das motivações das personagens camufladas pela pena simpática do narrador Aires, assume sua função reveladora, em estreita intimidade com toda a estrutura do enredo.
Porque fica lá no comecinho do livro, é comum que não nos lembremos da epígrafe, depois que adentramos as teias da história. Quando se trata da primeira leitura de uma obra, nossa mente costuma encontrar-se ainda naquele estado de abertura esponjosa e pouco focada, ao virarmos as primeiras páginas depois da capa e batemos o olho na frase ali inscrita como mote. Pela importância que tem para a leitura, deveríamos anotar essa frase em um filete de papel e usá-lo de marcador de página.
Como a profecia enigmática do oráculo, a epígrafe só mostra sua função e seu sentido a posteriori, quando os fatos vaticinados já ocorreram, sem dar oportunidade de intervenção modificadora a seus partícipes. Por isso, a leitura não deve ser linear e unidirecional. Em se tratando dos clássicos principalmente, dura a vida inteira e é marcada por vaivéns, sobes e desces, torvelinhos e enxurradas. E pela necessária e constante retomada daquele excerto que abre o livro, a epígrafe.

A seguir, algumas epígrafes de livros integrantes da meta de leitura deste ano:

Memorial de Aires, de Machado de Assis

"Em Lixboa, sobre lo mar,
Marcas novas mandey lavrar..."

Cantiga de Joham Zorro.

"Para veer meu amigo
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig'a preyto talhado,
Alá vou, madre."

Cantiga d'el-rei Dom Denis.

O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

"Já que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que foste instruído."

Lucas, 1, 1-4.

"Quod scripsi, scripsi."

("O que escrevi, escrevi.")

Pilatos

Crimes que abalaram a Paraíba - vol. 1, de Biu Ramos

"É inútil matar camponeses. Eles sempre viverão."

Raimundo Asfora

Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

"Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares."

João Guimarães Rosa

O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico."

Nelson Rodrigues

Caim, de José Saramago

"Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala."

(Hebreus, 11, 4)
LIVRO DOS DISPARATES

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