10/05/2018

Resenha: "A guerra não tem rosto de mulher", de Svetlana Alexiévitch

A guerra não tem rosto de mulher, primeiro livro que consumo da ganhadora do prêmio Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Alexiévitch, resulta de uma grande e engenhosa costura dos milhares de depoimentos de mulheres que participaram da guerra contra os nazistas pelo lado da antiga União Soviética. Insere-se bem na descrição que dela fez o comitê do Nobel, como uma "obra polifônica, um monumento do sofrimento e da coragem em nosso tempo". O título, muito chamativo e escolhido com genialidade, sintetiza bem o que se encontra no miolo.

Quando se pensa em guerra, realmente não se enxerga no rosto da entidade imaginada nenhum traço feminino. Não se cogita sequer de um rosto, este nosso emblema pessoal, outdoor de emoções e de sentimentos. Os olhos, que choram e são a janela da alma, estão no rosto, não nos braços que empunham metralhadoras e baionetas, nem nos pés que calçam botas e palmilham lamaçais, terrenos minados e corpos finados anônimos. O título escolhido por Svetlana Alexiévitch remete não apenas ao fato de as representações da guerra, onipresente fenômeno humano, serem completamente esvaziadas da participação feminina, como se essa não tivesse existido, mas também às tintas de intimidade, de sentimentos, de dramas prosaicos e quase envergonhados, como o de não poder usar um vestido, ou, durante um ataque, correr para o rio e arriscar-se, para poder lavar-se da menstruação com alguma privacidade, longe dos olhos masculinos. Esse enfoque contrasta até com o contexto em que as depoentes viveram, de preponderância do coletivo sobre o individual no mundo soviético.

Como não poderia deixar de ser, a condição feminina, com todos os seus desafios, seus traços históricos e sociais, sua racionalidade e sua sensibilidade, até seus estereótipos combatidos por parte do movimento feminista, aparece na obra com efeito impressionantemente inovador. A questão do que pode ou não pode, do que deve ou não deve ser dito sobre a guerra aflora logo no começo do livro, quando algumas mulheres relatam que os respectivos maridos quiseram ditar-lhes o que abordar. Nada de sentimentalismos, nada de cheiros, de emoções, de conflitos familiares. Vários depoimentos registram a preocupação de estar falando algo realmente relevante, mas do ponto de vista da corrente ainda majoritária de representar a guerra por meio de estratégias, de movimentações de tropas, de dados estatísticos e de heroísmos quase sempre masculinos. Se algum rosto aparecer, que seja o do general, do presidente, sempre homem.

A guerra não tem rosto de mulher ajuda a desconstruir mais esse primado do masculino nas representações políticas e sociais humanas, sem renunciar, para isso, a nenhum aspecto do feminino.