29/01/2015

"O moleque Ricardo": trechos escolhidos

Qual dos trechos abaixo é o preferido de vocês?



O alumbramento com a paisagem

"Voltava sozinho da escola. A estrada, um ermo completo. De barulho, só mesmo o das cigarras e das lagartixas nas folhas secas. Pensava então em muita cousa. Via pelos partidos o vento dobrando a folha da cana. Os pendões floriam pelo meio. Era um mau sinal. Cana de pendão não prestava, amadurecia antes de tempo."

(Cana-de-açúcar em pendão)

"O Sol das seis horas tocava nas coisas com mão de veludo. Acariciava. Os jardins tinham cores magníficas para mostrar."

"- Que lua bonita! - diziam elas olhando a lua com orgulho.
Eles ali também tinham lua. Era mesmo que barriga cheia."


Vida social

"Os protestantes falavam dos padres e de Nossa Senhora, e na casa de uma preta velha a polícia de vez em quando ia por lá buscar gente na corda. Fazia-se por lá feitiçaria."

"Havia muita briga de marido e mulher. E por causa de cousas pequenas. O jogo do bicho era sempre motivo dos maiores. O jantar não prestava, era pouco:
- Em que diabo gastaste o dinheiro, mulher? Está jogando no bicho outra vez, hein, cachorra?
E o bofete cantava no toitiço. Elas também não ficavam quietas, como leva-pancadas. Investiam. Os meninos choravam na porta de casa, num berreiro de saída de enterro. E o braço vadiando dentro de casa, os dentes da mãe no cangote do pai, os troços se quebrando. O povo acudia, desempatava o casal, a mulher chorando, de sangue correndo pelas ventas, e o homem bufando:
- Esta burra pensa que faz o que quer!
Os outros se chegavam para ele, acomodavam. E a mulher ia para a cama chorar, fazer dormir os meninos pequenos. Nesta noite o marido dormia debaixo da mangueira, com as estrelas no céu e o vento bom para acalentar o sono de um justo. De manhã a mulher preparava o café com pão crioulo. Ele saía de casa com a cara feia, mas se não tivesse gênio, de noite chegaria com a cara alegre. E a mulher passaria uma semana sem jogar no bicho. E quase sempre um filho novo aparecia de tudo isso."

"O que aprendeu num ano que passou na escola, nada lhe valia. Deu somente para lhe abrir uma brecha para o mundo, para a vida. Ninguém passaria por aquela brecha tão estreita."

"Eram bons companheiros, os caranguejos. Viviam deles, roíam-lhes as patas, comiam-lhes as vísceras amargas. Cozinhavam nas panelas de barro, e os goiamuns de olhos azuis, magros que só tinham o casco, enchiam a barriga deles. Morar na beira do mangue só tinha esta vantagem: os caranguejos. Com o primeiro trovão que estourava, saíam doidos dos buracos, enchiam as casas com o susto. Os meninos pegavam os fugitivos e quando havia de sobra encangavam para vender. Para isto andavam de noite na lama com lamparina acesa na perseguição. Caranguejo ali era mesmo que vaca leiteira, sustentava o povo."

(Catador de caranguejo)


A sensibilidade de Ricardo

"Coração feito mais de carne do que os dos outros. Nele qualquer coisa doía, feria fundo."

"A dor ainda não se comunicara ao que ele tinha de vivo. O coração do negro permanecia com o seu baticum, mas batia dentro de uma caixa como qualquer outra."


O Carnaval

("Frevo", de Pierre Verger)


"O Carnaval era para aquela gente uma libertação. Podiam passar fome, podiam aguentar o diabo da vida, mas no Carnaval se espedaçavam de brincar."

"Se eles tivessem uma Isaura, só cuidariam dela. A negra era falante. Falava como as brancas do Santa Rosa, usava sapatos de salto alto, lia o jornal. Um assombro para o moleque embeiçado. No seu quarto pregara o retrato dela na parede, de pega-rapaz caindo pela testa, de olhos quebrados. Isaura. O nome entrava-lhe pelos ouvidos com recordações antigas."

"Os clubes e os blocos quando passavam, parava tudo que era carro e automóvel. Os cabras quebravam na frente numa impetuosidade de furiosos. As pernas entravam umas por dentro das outras, depois ficavam com a bunda quase que rente ao chão e as mulheres sacudiam para frente tudo que tinham de bom. E peitos e ventres que pouco ligavam à surra das umbigadas. Era uma alegria que atingia os últimos recursos. De repente paravam. A orquestra se calava. Esperava-se então que rompesse o fogo outra vez para que eles pudessem se despedaçar:
- Música! música! - gritavam."

"Verdade no Carnaval não ofendia a ninguém."

"Na rua da Concórdia houve rolo dos Toureiros com os Vassourinhas. A faca botou barriga de gente abaixo. Um automóvel esbagoara um menino do Bloco das Flores. Mas ninguém parava para ver."


A morte na vizinhança

"Dentro da casa as mulheres rezavam em voz alta. A reza saía pelo nariz e era triste de verdade."

"A casa se enchera de espectadores para ver o drama mais representado deste mundo e o mais inédito para todo o mundo. A casa se enchera para ver Odete morrer."

"O cheiro de incenso e o canto das negras davam sinais de eternidade à casa pobre de seu Abílio."

Prêmios para os 5 primeiros comentadores do blog

Caros leitores desconhecidos, como o blog está em seus albores, resolvi premiar aqueles cinco primeiros destemidos que fizerem um comentário em qualquer postagem. O pioneirismo de vocês, além de entrar para os anais da história, será recompensado com um bonito marcador de página, que será enviado, a minhas expensas, via Correios, acompanhado de um cartão de agradecimento com reprodução de uma obra de arte. O comentário deve ter sujeito, verbo e objeto. Cada pessoa só poderá receber um par de itens. Logo postarei imagens dos marcadores e dos cartões, e os premiados poderão escolher aqueles que receberão, do primeiro ao último que comentar.

O moleque Ricardo

O moleque Ricardo é um romance particularmente rico na produção do paraibano José Lins do Rego. Celebrizado pelas obras do chamado ciclo da cana de açúcar, que reconstitui vivamente os aspectos privados e socioeconômicos da civilização do açúcar, Zé Lins criou essa espécie de interregno, que é o livro objeto desta resenha. O foco da narrativa desloca-se da elite canavieira e da geografia da várzea do Paraíba para o negro Ricardo e suas peripécias no mundo urbano do Recife nas primeiras décadas do século XX.


(O pernambucano Manuel Bandeira e o paraibano José Lins do Rego, este com a farda da Academia Brasileira de Letras)

Desde o ano passado, estou relendo, em alguns casos, e lendo, em outros, todos os romances do ciclo açucareiro. Reli Menino de engenho e li Doidinho, Banguê e Usina, além do já mencionado O moleque Ricardo. Falta, para completar o projeto, a releitura de Fogo morto, considerado a obra-prima do autor. Tenho particular interesse por essas histórias, porque, sendo paraibano, o ambiente descrito é-me familiar, e eu pretendo aproveitar o resgate da natureza e da sociedade da época para, quem sabe, escrever um livro sobre o qual poderei comentar futuramente. Zé Lins registrou aspectos dessa civilização que não são facilmente recuperados por meio de pesquisa em arquivos, de modo que sua literatura, além das qualidades estéticas e da função que exerce como arte, também é fonte histórica valiosa.


(Minha edição de O moleque Ricardo, caixa com livros do ciclo da cana-de-açúcar e os dois do ciclo do cangaço)

Como eu dizia, O moleque Ricardo conecta-se com os demais romances do ciclo, mas incorre em um duplo deslocamento, que tem efeitos extraordinários. A leitura pode ser feita independentemente, mas aposto que fica bem melhor, se realizada na sequência, porque as referências a personagens, ao mundo do engenho e a situações tornam o relato muito mais interessante. Como diz uma personagem de Saramago no romance Caim: "nos pormenores é que está o sal". 
Os momentos mais temperados do livro são aqueles em que Ricardo confronta os dois mundos, o rural do engenho e o urbano do Recife. Há um jogo de expectativas e de frustrações do começo ao fim, e a prosa de Zé Lins, íntima, amiga, dotada da difícil simplicidade que caracteriza a fala dos grandes contadores de histórias ao pé do fogão ou no alpendre de casa, enreda-nos na torcida pelo pobre moleque de bagaceira que, apesar de todos os motivos de revolta que a vida lhe daria, esmera-se no trabalho, esforça-se diligentemente e seria candidato a case de self-made man, se ele existisse em um meio social que premiasse o empenho e o mérito.
Ao ler O moleque Ricardo, prestem atenção à diversidade de elementos da vida urbana recifense, comum a várias cidades brasileiras do início do século, com a diferença apenas da medida. Comparecem os imigrantes, a miséria das periferias, os carnavais de rua, o engajamento popular nos blocos, a religiosidade que mistura crenças de matriz africana com o catolicismo nosso de todo o sempre, o surgimento do movimento sindical e das primeiras greves, o oportunismo de políticos populistas que pegam carona nos anseios de vida digna dos operários citadinos. O livro é largo e profundo, sem perder a coesão, cujo núcleo é a personagem-título.
Eu dei 4 estrelas de 5. Minha edição é a 27.a, com a capa amarelo creme que caracterizou uma leva de edições da obra de Zé Lins. As capas mais recentes estão mais bonitas, com imagens em estilo de xilogravura e um quadrado monocromático com aplicação de verniz, em que ficam os nomes do autor e de cada obra. O trecho que selecionei para a postagem do @palavradeliteratura foi este:


A lua banhava tudo de branco como nas cajazeiras da estrada. Mãe Avelina, Joana, todas se sentavam na porta da rua para apreciar o luar. O terreiro parecia uma toalha de MADAPOLÃO estendida.
Reproduz bem o estilo de Zé Lins, com imagens muito concretas, que evocam os sentidos e o passado. "Madapolão" é, segundo o Dicionário Houaiss, um "tecido encorpado de algodão, branco e liso". Na cena descrita, as ex-escravas ficadas no engenho por falta de rumo melhor, inclusive a mãe de Ricardo, Avelina, estão sentadas ao relento, em noite de Lua, provavelmente trocando impressões sobre o dia, falando da vida alheia ou ouvindo histórias sem tempo. O terreiro, onde sujam esquecidas os pés de poeira e acompanham, de soslaio, a brincadeira dos moleques, está todo coberto pela luz lunar benfazeja, que não discrimina ninguém, como um manto da santa protetora.


(Obra de Cícero Dias com reprodução do ambiente do Engenho Noruega)

Se já leu O moleque Ricardo, diga-me o que achou no campo de comentários abaixo!

20/01/2015

"Dois irmãos": meus trechos prediletos


Depois da postagem anterior sobre Dois irmãos, deixo aqui meus trechos preferidos do livro:

A sala fervilhava de foliões, e no meio das tantas cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhantes ao dele, pertinho do rosto que admirava.

Quando as casas da rua explodiam de gritos, Zana me mandava zarelhar pela vizinhança, eu cascalhava tudo, roía os ossos apodrecidos dos vizinhos. Era cobra nisso. Memorizava as cenas, depois contava tudo para Zana, que se deliciava, os olhos saltando de tanta curiosidade: "Conta logo, menino, mas devagar... sem pressa". Eu me esmerava nos detalhes, inventava, fazia uma pausa, absorto, como se me esforçasse para lembrar (...).

(...) mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado.

Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio.

Não se sabe o que conversaram, mas cada uma tateava o território da outra, ambas cheias de gestos e disfarces, e muito nervosas, atrizes em noite de estreia.

Era um rapaz esquisito mesmo, dissimulado, quase apresentado, quase sorridente, um tipo cheio de metades e quase, com um nariz enjambrado no rosto meio chupado. Uma figura que carecia de olhar, que é como carecer de alma.

Tinha asas, era impulsivo, mas faltou-lhe força para voar alto e perder-se livremente no imenso céu do desejo.

Suas orações, sempre serenas, pareciam duvidar das coisas do além.

A floresta: é sobrevoar, admirar, assombrar-se e desistir.

Nenhum passado é anônimo.

A vida vai andando em linha reta, de repente dá uma cambalhota, a linha dá um nó sem ponta.

"O comércio é antes de tudo uma troca de palavras".

(...) o tempo que faz uma pessoa se tornar humilde, cínica ou cética.

As asas finas de um saracuá, o pássaro mais belo, empoleirado num galho de verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe tinham servido os outros.

Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras (...).

Notei no seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver. Mas quando Zana procurou minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido...

O futuro, essa falácia que persiste.

Dois irmãos: desventrar

No ano passado, meus colegas de trabalho e eu decidimos começar um clube de leitura. A ideia era cada um escolher, em rodízio, um livro não muito extenso, para ser lido por todos e depois debatido. O primeiro a escolher fui eu. Nunca lera nada de Milton Hatoum, embora, comprador compulsivo de livros, já tivesse o Dois irmãos na prateleira, exemplar da coleção Companhia de Bolso. Por felicidade, indiquei-o, e todos acataram. À medida que líamos, uns mais rapidamente do que outros, com cuidado para não fazer spoiler, comentávamos a trama com crescente entusiasmo. Muito do que incluirei neste comentário terá sido aproveitado das impressões compartilhadas por esses meus amigos, quando discutimos a obra, depois de muito adiamento, em uma casa de chá de Brasília. Todos terminaram a leitura e gostaram tanto do romance, que estamos agora lendo Cinzas do Norte.


(Dois irmãos, de Milton Hatoum, na edição regular e na de bolso, a que li)

A trama de Dois irmãos é tecida pela rivalidade talvez inata entre Yaqub e Omar, os dois irmãos a que o título alude. À medida que crescem, ganham força física e poder de todos os tipos, os conflitos entre os irmãos e sua repercussão sobre a família ficam mais tensos, complexos, anuviados e irreversíveis. Pelo que percebi da recepção de meus colegas à história, é natural que nós, leitores, tomemos logo partido por um dos dois, a depender de nossos valores e nossas identificações. Isso também me aconteceu. De todas as personagens, cada qual com suas imperfeições humanas, a única que praticamente não contou com minha simpatia foi Omar, que conquistou o apoio apenas de um dos colegas integrantes do clube de leitura.

O tempo do romance estende-se, grosso modo, da época em que os pais dos gêmeos se conheceram, em torno da década de 1920, até os anos que sucederem o Golpe Civil-Militar de 1964. O cenário principal é a capital amazonense, e o autor, manauara, recheia o livro de espécies animais e vegetais amazônicos, pratos típicos com sugestão de sabores e de cheiros, descrições dos hábitos da vida em cidade fluvial e outros elementos que ajudam a formar uma ambiência que eleva Manaus à condição de cidade literária. O narrador, cujo nome mal aparece, é Nael, filho de Domingas, uma índia que chegou à casa dos pais dos gêmeos, Zana e Halim, que têm origem libanesa, para servi-los uma vida inteira.


(Uma catraia navegando no igarapé de S. Raimundo, em Manaus)

"Mas a visão das dezenas de catraias alinhadas impressionava mais. No meio da travessia já se sentia o cheiro de miúdos e vísceras de boi. Cheiro de entranhas. Os catraieiros remavam lentamente, as canoas emparelhadas pareciam um réptil imenso que se aproximava da margem."

Em algumas ocasiões, os acontecimentos narrados por Nael parecem assumir função alegórica. As mortes de alguns personagens, que eu não direi quais são, para não surrupiar de vocês o elemento surpresa, provavelmente simbolizam momentos-chave da ditadura que se instalou no Brasil depois de 1964. Uma das personagens morre em 1964, e a outra, em 1968: o primeiro, o ano da primeira estocada na ordem constitucional do país; o segundo, marco do endurecimento repressivo. Em um post-scriptum*, direi quem são as personagens e o que suas mortes podem simbolizar.

A rivalidade entre dois irmãos alinha o romance de Milton Hatoum em uma longa tradição mítico-literária, que remete aos bíblicos/corânicos Caim e Abel, filhos do primeiro casal Adão e Eva, e Esaú e Jacó, assim como a Pedro e Paulo, personagens do penúltimo romance machadiano, intitulado Esaú e Jacó. Não deve ser por acaso que "Yaqub" equivale, em árabe, a "Jacó", mas as duas personagens não se encaixam perfeitamente. Por exemplo, na Bíblia, Jacó era o gêmeo mais moço que surrupiou a primogenitura do irmão Esaú, por meio de uma artimanha para a qual contou com o apoio da mãe, Rebeca. Yaqub não é o predileto de Zana nem é o caçula. Yaqub coincide com Jacó pelo nome, por uma espécie de primogenitura espiritual, pelo exílio e pelo modo de agir matreiro e calculado. Omar aproxima-se de Esaú por ser peludo e truculento, mas, diferentemente da personagem bíblica, é o preferido da mãe.


(Edição recente de Esaú e Jacó, penúltimo romance do mestre supremo da literatura brasileira, Machado de Assis. A trama também gira em torno da rivalidade entre irmãos gêmeos)

Os nomes das personagens não são aleatórios. Como mencionado, Yaqub remete a Jacó. Halim, o pai dos gêmeos, além de ser um adjetivo árabe que significa gentil, paciente, compreensivo, ameno, é um dos noventa e nove nomes de Deus, no Islamismo, aquele que designa seu aspecto condescendente e misericordioso com a desobediência. Tudo isso combina com o temperamento da personagem Halim, em Dois irmãos. Nael, por sua vez, é um nome corânico que significa, ao mesmo tempo, corajoso, vencedor, descobridor, realizador e dádiva, isto é, aquilo que Alá concede a alguém. Como a narrativa do livro decorre de uma busca de Nael, e ele é um sobrevivente relativamente exitoso do caos que é a família em cujo seio foi criado, o sentido de seu nome reforça as características e o destino da personagem.

Dois irmãos foi um dos melhores livros que li em 2014. Recomendo muito a leitura e tenho até vontade de relê-lo. Não tenho muita simpatia por autores contemporâneos, pois confio no crivo do tempo para selecionar minhas leituras, tão limitadas pelo período curto de vida que temos, mas Milton Hatoum merece minha atenção e admiração. Fico feliz em saber que a boa literatura brasileira ainda gera talentos. Ontem terminei Cinzas do Norte, também dele, e, embora não tenha superado Dois irmãos, é outra leitura que vale muito a pena. Oportunamente, devo escrever aqui sobre ele também.


(Traduções de Dois irmãos em alemão, inglês e francês)

No @palavradeliteratura, o trecho que postei de Dois irmãos é parte de uma sequência em que Omar, o enfant terrible do livro, é acometido de loucura e passa a remexer o quintal de casa:


"Catava frutas bichadas, mas perdia tempo com uma jaca DESVENTRADA, observando as moscas e larvas aninhadas na polpa amarela."

Se vocês já viram uma jaca espatifada no chão, como eu vi, essa imagem terá, para vocês, cheiro, cor e consistência. Consigo visualizar as tripas escapando da fruta abdominosa. A prosa de Milton Hatoum tem essa grande qualidade de formar na mente do leitor imagens que, de tão vivas, parecem materializar-se.

PdL
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*PS: O autor faz coincidir claramente a morte do poeta Antenor Laval com o Golpe e a morte de Halim com 1968 e o endurecimento do regime. A morte do primeiro é a derrocada do poético e do espírito livre; a do segundo talvez signifique o desaparecimento dos limites mínimos, da ponderação ou até de Deus, pois "Halim" é um dos 99 nomes do deus muçulmano.

18/01/2015

O evangelho segundo Jesus Cristo: "malga"

O blog começa retardatário em relação ao Instagram. Um dos objetivos, de partida, será publicar uma postagem aqui para cada uma das que já estão lá. Começo com José Saramago, seu Evangelho segundo Jesus Cristo e a palavra "malga".

(O lugar do blogueiro: esta postagem foi feita nesse cenário)


Não me lembro de nenhum outro livro ter-me transformado em um carrinho em trilho de montanha-russa e feito minhas emoções oscilarem tão intensamente e tantas vezes do riso às lágrimas.

Deve fazer uns quinze anos que li, pela primeira vez, um livro do único ganhador do prêmio Nobel de Literatura a escrever em português, José Saramago. Foi uma edição de banca de revista do Jangada de Pedra, a capa dura, o papel meio grosseiro, tipo de jornal. Integrava a coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa". De lá para cá, Saramago tornou-se um de meus autores prediletos. Até o presente, Ensaio sobre a cegueira, que virou filme sob a direção do brasileiro Fernando Meirelles, era meu preferido, seguido, de perto, de Todos os nomes. O evangelho, cuja leitura eu adiava havia anos, furou a fila e agora está na dianteira. Entrou também na lista de meus dez livros mais amados.


(alguns livros da coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa" em minha estante)


(livros de Saramago aqui à mão)

Que novidade poderia haver em uma história contada e recontada há dois mil e quinze anos? Quantas filmagens e encenações da Paixão de Cristo vocês não já viram, no todo ou em parte, ao longo da vida? O elemento surpresa, atrativo de muitas narrativas, dificilmente estaria presente: todo mundo sabe que a personagem principal dessa história morrerá crucificada, depois de vividos alguns episódios sem muita carga dramática, exceto por um milagre aqui ou ali, em que ninguém acha graça.  

Quem já refletiu um pouco mais sobre literatura e sobre a arte de contar histórias deve ter chegado à conclusão de que o fascínio de uma narrativa não está na exposição do milagre em si, mas, na verdade, em mostrar como foi feito, quais foram suas causas e quais serão as consequências. Lembram-se da grande audiência que Mr. M deu ao Fantástico? A diferença do evangelho de Saramago está no como, nas ênfases em determinados episódios e no recheio que ele usou, para preencher as lacunas da história celebrizada com a disseminação do cristianismo. Exemplificar bem isso me levaria, inevitavelmente, a estragar algumas surpresas, porque as há. Conforme eu disse, os pontos-chave da biografia bíblica de Jesus repetem-se, mas os imprevistos estão em como são encadeados.

Preciso usar um parágrafo para advertir aqueles que levam a religião muito a sério de que Saramago, ao recontar a história de Jesus, não adotou a mesma reverência que talvez vocês esperassem. Deus, o Diabo, Jesus, Maria de Nazaré, José, Maria de Magdala e outras personagens que entrariam na hagiografia católica misturam-se, convivem, e não estão caracterizados com as qualidades morais que se poderia prever. O Jesus de Saramago é de uma humanidade pungente em seu esforço sincero e angustiado de ser bom, é um herói; o Diabo do livro é um humanista pragmático e não deixa de contar com nossa simpatia; quanto a Deus, bem, sinto dizer que é o maior vilão dessa trama. Uma leitura atenta do romance deve desafiar crenças e contestar paradigmas. Conhecer bem a história bíblica tanto pode tornar a leitura mais instigante, como pode ferir susceptibilidades. Fica o aviso.

Se lerem, prestem atenção (aos que já leram, tentem lembrar) a como Saramago agrupa, em torno de Jesus, sempre pares de personagens que podem ser bem medidos um em relação ao outro. Por exemplo, Maria de Nazaré, a mãe, e Maria de Magdala (ou Madalena), a companheira: a primeira virtuosa, casada, mãe, exemplar segundo as leis oficiais e divinas, mas falha no reconhecimento do filho; a segunda, prostituta, impura ante os olhos da comunidade, mas de uma compreensão e comunhão divinas com Jesus. Uma das cenas  mais comoventes do Evangelho é o primeiro encontro entre as duas, depois de tempos de preparação, durante os quais uma ouvia falar da outra, unidas pelo vínculo afetivo com Jesus. Outros pares: Deus, o pai celeste, e José, o pai de carne e osso; Tiago, o irmão que assume as responsabilidades de Jesus como primogênito da casa, e José, o irmão afetuoso; Deus e o Diabo, claro. Cada par desses renderia um texto inteiro de análise. Se quiserem, posso fazer.

Como eu vou agora, depois de tudo que ficou dito, incluir a "malga" nesta conversa? Para que não precisem correr à primeira postagem do Palavra de Literatura no Instagram, recupero aqui tanto o trecho do Evangelho em que a palavra apareceu, quanto a definição retirada do Houaiss:

"A mãe tinha acabado de preparar a ceia, sentaram-se todos à volta da MALGA comum e comeram do que havia."

malga substantivo feminino ( 1510)tigela ou prato fundo de louça em que se toma sopa, caldo

(Nessa pintura do português José Malhoa, uma malga é emborcada sobre a mesa por um bêbado)


Aqui vai aparecer um spoiler, portanto, se você, em uma história, dá mais importância ao quê do que ao como, pule para o parágrafo seguinte. A ceia mencionada no excerto que pincei é carregada de emoção. José não está presente. O homem da casa, marido de Maria, pai de Jesus e de seus irmãos, não apenas respeitado pela sua posição hierárquica naquela sociedade patriarcal, mas também amado por suas qualidades pessoais, morreu. Não digo como, porque é uma das surpresas do livro. Será a primeira refeição da família após a morte de José, todos estão profundamente tristes, todos têm a garganta atada por um nó cego, todos, exceto os muito miúdos - pelas óbvias razões -, pensam nas incertezas do amanhã, provavelmente todos estão sem fome, mas a ceia conjunta é o primeiro passo dessa família para o futuro em direção ao qual os vivos necessitam caminhar. Ato corriqueiro, comezinho, banal, repetitivo, essa ceia deverá ser inesquecível. No centro da cena, a malga, uma grande tigela para a qual convergem as mãos da família sentada em redor do objeto, receptáculo do alimento compartilhado.

Seria espantoso, se eu revelasse que "malga" vem do grego? Assim como eu gosto de histórias de pessoas, também me apetecem as das palavras. Resgatar detalhadamente o percurso de "malga" do grego antigo até a flor do Lácio que falamos no Brasil não caberia neste texto, exigiria um exclusivo. Deixem-me apenas registrar a curiosidade de que, na origem antiga, a palavra era magís (μαγίς) e designava: a) uma massa de pão, b) um pão de mel oferecido no altar de Trofônio, c) mesa ou d) o prato de uma balança. Ao que parece, o percurso do sentido carregado pela palavra girou sempre em torno da relação metonímica entre o alimento e seu recipiente. Cada significado etimológico desses renderia ótimos ganchos analíticos para a leitura do Evangelho

Os livros e as histórias neles contidas comparam-se à malga: nós metemos as mãos em suas páginas, os olhos, em suas palavras, a mente, em suas personagens,  imaginação, em tudo que acontece e é narrado neles. Isso alimenta-nos e faz-nos comungar com outras pessoas, inclusive, as que já morreram e, num passado em que não vivemos, leram, emocionaram-se e viram o mundo semelhantemente a nós, por haverem conhecido as mesmas histórias.

Eu desejo que este blog seja como a malga, e todos nós tanto depositemos nele quanto retiremos dele alimento para nosso cotidiano.

17/01/2015

À guisa de apresentação

Há poucas semanas, decidi criar um perfil no Instagram para compartilhar trechos de livros lidos em que houvesse palavras que não fazem parte de nosso cotidiano. Seria uma espécie de coleção de palavras raras. Como palavras não surgem à toa em um idioma, expressam situações, sentimentos, conceitos, objetos, colecionar palavras raras é uma maneira de, ao mesmo tempo, coletar e desencavar situações insólitas, sentimentos muliados, conceitos heteróclitos, objetos desvezados. É um jeito de enriquecer nossa experiência do mundo. E o contato com a literatura e com as artes em geral é um dos caminhos mais curtos para esse enriquecimento. Daí o nome Palavra de Literatura.

Por outro lado, toda palavra é de literatura, porque, ladeada de outras palavras, todas elas ordenadas de uma maneira peculiar - maneira que ressalte o som, valorize o ritmo, realce os sentidos -, assume um estatuto distinto, uma expressividade literária. Nessas condições, o Palavra de Literatura abre-se também para o compartilhamento de excertos especiais, que nem sempre coincidem com aqueles que abrigam os vocábulos invisos no dia a dia. Esses trechos compartilhados podem ser de ficção ou de não-ficção, desde que encerrem alguma beleza de forma ou alguma ideia singular.

Na companhia de cada trecho, tentarei deixar uma opinião sobre o livro de que foi retirado, um comentário pessoal, uma informação da crítica, uma nota biográfica do autor. Com o tempo, estará formado um longo cordão de palavras, de trechos e de sugestões de leitura, que espero seja enfeitado pelas miçangas das intervenções de vocês: quero saber o que acharam do que compartilhei, seus livros e trechos prediletos, seus autores queridos e os rejeitados, o que andam lendo.

A foto acima foi a mais curtida no Instagram até o presente. Graças a Homero, meu gato, e aos livros.