18/01/2015

O evangelho segundo Jesus Cristo: "malga"

O blog começa retardatário em relação ao Instagram. Um dos objetivos, de partida, será publicar uma postagem aqui para cada uma das que já estão lá. Começo com José Saramago, seu Evangelho segundo Jesus Cristo e a palavra "malga".

(O lugar do blogueiro: esta postagem foi feita nesse cenário)


Não me lembro de nenhum outro livro ter-me transformado em um carrinho em trilho de montanha-russa e feito minhas emoções oscilarem tão intensamente e tantas vezes do riso às lágrimas.

Deve fazer uns quinze anos que li, pela primeira vez, um livro do único ganhador do prêmio Nobel de Literatura a escrever em português, José Saramago. Foi uma edição de banca de revista do Jangada de Pedra, a capa dura, o papel meio grosseiro, tipo de jornal. Integrava a coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa". De lá para cá, Saramago tornou-se um de meus autores prediletos. Até o presente, Ensaio sobre a cegueira, que virou filme sob a direção do brasileiro Fernando Meirelles, era meu preferido, seguido, de perto, de Todos os nomes. O evangelho, cuja leitura eu adiava havia anos, furou a fila e agora está na dianteira. Entrou também na lista de meus dez livros mais amados.


(alguns livros da coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa" em minha estante)


(livros de Saramago aqui à mão)

Que novidade poderia haver em uma história contada e recontada há dois mil e quinze anos? Quantas filmagens e encenações da Paixão de Cristo vocês não já viram, no todo ou em parte, ao longo da vida? O elemento surpresa, atrativo de muitas narrativas, dificilmente estaria presente: todo mundo sabe que a personagem principal dessa história morrerá crucificada, depois de vividos alguns episódios sem muita carga dramática, exceto por um milagre aqui ou ali, em que ninguém acha graça.  

Quem já refletiu um pouco mais sobre literatura e sobre a arte de contar histórias deve ter chegado à conclusão de que o fascínio de uma narrativa não está na exposição do milagre em si, mas, na verdade, em mostrar como foi feito, quais foram suas causas e quais serão as consequências. Lembram-se da grande audiência que Mr. M deu ao Fantástico? A diferença do evangelho de Saramago está no como, nas ênfases em determinados episódios e no recheio que ele usou, para preencher as lacunas da história celebrizada com a disseminação do cristianismo. Exemplificar bem isso me levaria, inevitavelmente, a estragar algumas surpresas, porque as há. Conforme eu disse, os pontos-chave da biografia bíblica de Jesus repetem-se, mas os imprevistos estão em como são encadeados.

Preciso usar um parágrafo para advertir aqueles que levam a religião muito a sério de que Saramago, ao recontar a história de Jesus, não adotou a mesma reverência que talvez vocês esperassem. Deus, o Diabo, Jesus, Maria de Nazaré, José, Maria de Magdala e outras personagens que entrariam na hagiografia católica misturam-se, convivem, e não estão caracterizados com as qualidades morais que se poderia prever. O Jesus de Saramago é de uma humanidade pungente em seu esforço sincero e angustiado de ser bom, é um herói; o Diabo do livro é um humanista pragmático e não deixa de contar com nossa simpatia; quanto a Deus, bem, sinto dizer que é o maior vilão dessa trama. Uma leitura atenta do romance deve desafiar crenças e contestar paradigmas. Conhecer bem a história bíblica tanto pode tornar a leitura mais instigante, como pode ferir susceptibilidades. Fica o aviso.

Se lerem, prestem atenção (aos que já leram, tentem lembrar) a como Saramago agrupa, em torno de Jesus, sempre pares de personagens que podem ser bem medidos um em relação ao outro. Por exemplo, Maria de Nazaré, a mãe, e Maria de Magdala (ou Madalena), a companheira: a primeira virtuosa, casada, mãe, exemplar segundo as leis oficiais e divinas, mas falha no reconhecimento do filho; a segunda, prostituta, impura ante os olhos da comunidade, mas de uma compreensão e comunhão divinas com Jesus. Uma das cenas  mais comoventes do Evangelho é o primeiro encontro entre as duas, depois de tempos de preparação, durante os quais uma ouvia falar da outra, unidas pelo vínculo afetivo com Jesus. Outros pares: Deus, o pai celeste, e José, o pai de carne e osso; Tiago, o irmão que assume as responsabilidades de Jesus como primogênito da casa, e José, o irmão afetuoso; Deus e o Diabo, claro. Cada par desses renderia um texto inteiro de análise. Se quiserem, posso fazer.

Como eu vou agora, depois de tudo que ficou dito, incluir a "malga" nesta conversa? Para que não precisem correr à primeira postagem do Palavra de Literatura no Instagram, recupero aqui tanto o trecho do Evangelho em que a palavra apareceu, quanto a definição retirada do Houaiss:

"A mãe tinha acabado de preparar a ceia, sentaram-se todos à volta da MALGA comum e comeram do que havia."

malga substantivo feminino ( 1510)tigela ou prato fundo de louça em que se toma sopa, caldo

(Nessa pintura do português José Malhoa, uma malga é emborcada sobre a mesa por um bêbado)


Aqui vai aparecer um spoiler, portanto, se você, em uma história, dá mais importância ao quê do que ao como, pule para o parágrafo seguinte. A ceia mencionada no excerto que pincei é carregada de emoção. José não está presente. O homem da casa, marido de Maria, pai de Jesus e de seus irmãos, não apenas respeitado pela sua posição hierárquica naquela sociedade patriarcal, mas também amado por suas qualidades pessoais, morreu. Não digo como, porque é uma das surpresas do livro. Será a primeira refeição da família após a morte de José, todos estão profundamente tristes, todos têm a garganta atada por um nó cego, todos, exceto os muito miúdos - pelas óbvias razões -, pensam nas incertezas do amanhã, provavelmente todos estão sem fome, mas a ceia conjunta é o primeiro passo dessa família para o futuro em direção ao qual os vivos necessitam caminhar. Ato corriqueiro, comezinho, banal, repetitivo, essa ceia deverá ser inesquecível. No centro da cena, a malga, uma grande tigela para a qual convergem as mãos da família sentada em redor do objeto, receptáculo do alimento compartilhado.

Seria espantoso, se eu revelasse que "malga" vem do grego? Assim como eu gosto de histórias de pessoas, também me apetecem as das palavras. Resgatar detalhadamente o percurso de "malga" do grego antigo até a flor do Lácio que falamos no Brasil não caberia neste texto, exigiria um exclusivo. Deixem-me apenas registrar a curiosidade de que, na origem antiga, a palavra era magís (μαγίς) e designava: a) uma massa de pão, b) um pão de mel oferecido no altar de Trofônio, c) mesa ou d) o prato de uma balança. Ao que parece, o percurso do sentido carregado pela palavra girou sempre em torno da relação metonímica entre o alimento e seu recipiente. Cada significado etimológico desses renderia ótimos ganchos analíticos para a leitura do Evangelho

Os livros e as histórias neles contidas comparam-se à malga: nós metemos as mãos em suas páginas, os olhos, em suas palavras, a mente, em suas personagens,  imaginação, em tudo que acontece e é narrado neles. Isso alimenta-nos e faz-nos comungar com outras pessoas, inclusive, as que já morreram e, num passado em que não vivemos, leram, emocionaram-se e viram o mundo semelhantemente a nós, por haverem conhecido as mesmas histórias.

Eu desejo que este blog seja como a malga, e todos nós tanto depositemos nele quanto retiremos dele alimento para nosso cotidiano.

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