20/01/2015

"Dois irmãos": meus trechos prediletos


Depois da postagem anterior sobre Dois irmãos, deixo aqui meus trechos preferidos do livro:

A sala fervilhava de foliões, e no meio das tantas cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhantes ao dele, pertinho do rosto que admirava.

Quando as casas da rua explodiam de gritos, Zana me mandava zarelhar pela vizinhança, eu cascalhava tudo, roía os ossos apodrecidos dos vizinhos. Era cobra nisso. Memorizava as cenas, depois contava tudo para Zana, que se deliciava, os olhos saltando de tanta curiosidade: "Conta logo, menino, mas devagar... sem pressa". Eu me esmerava nos detalhes, inventava, fazia uma pausa, absorto, como se me esforçasse para lembrar (...).

(...) mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado.

Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio.

Não se sabe o que conversaram, mas cada uma tateava o território da outra, ambas cheias de gestos e disfarces, e muito nervosas, atrizes em noite de estreia.

Era um rapaz esquisito mesmo, dissimulado, quase apresentado, quase sorridente, um tipo cheio de metades e quase, com um nariz enjambrado no rosto meio chupado. Uma figura que carecia de olhar, que é como carecer de alma.

Tinha asas, era impulsivo, mas faltou-lhe força para voar alto e perder-se livremente no imenso céu do desejo.

Suas orações, sempre serenas, pareciam duvidar das coisas do além.

A floresta: é sobrevoar, admirar, assombrar-se e desistir.

Nenhum passado é anônimo.

A vida vai andando em linha reta, de repente dá uma cambalhota, a linha dá um nó sem ponta.

"O comércio é antes de tudo uma troca de palavras".

(...) o tempo que faz uma pessoa se tornar humilde, cínica ou cética.

As asas finas de um saracuá, o pássaro mais belo, empoleirado num galho de verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe tinham servido os outros.

Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras (...).

Notei no seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver. Mas quando Zana procurou minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido...

O futuro, essa falácia que persiste.

Um comentário:

Deixe uma palavrinha