11/09/2015

A diplomacia no "Memorial de Aires"

Nosso mito literário.

A releitura recente do Memorial de Aires tem rendido uma série de postagens. Na primeira delas, estabeleci uma espécie de programa, de que o presente texto é um cumprimento parcial. Entre o surgimento da ideia desta postagem e sua execução, ocorreu que li um texto crítico de John Gledson sobre o romance, e isso reconfigurou o plano inicial. Minha intenção será analisar como a caracterização do narrador como diplomata confirma a interpretação do romance proposta por John Gledson, no ensaio crítico que eu mencionei na postagem Mais "Memorial de Aires", John Gledson e a crítica literária.
O diplomata-mor brasileiro.
O narrador do romance é diplomata aposentado. Ele terminou sua atividade profissional na classe de Conselheiro, que atualmente é uma posição intermediária na carreira diplomática, formada por seis níveis, comparáveis às patentes militares ou eclesiásticas. No plano atual da diplomacia brasileira, começa-se a carreira como Terceiro-Secretário e pode-se passar a Segundo- e Primeiro-Secretário, Conselheiro, Ministro de Segunda Classe e Ministro de Primeira Classe. Na época de Aires, o cargo de Conselheiro era um dos mais altos, quando a quantidade de países soberanos era bem menor, o Brasil tinha uma presença bem mais modesta no mundo, e as relações exteriores brasileiras eram, por conseguinte, menos complexas.

Se o diplomata ainda é um bicho estranho para a imensa maioria da população brasileira, cercado de idealizações de glamour e de sofisticação, a realidade era muito mais próxima dessa imagem no final do século XIX, quando mesmo o ingresso no mundo letrado era bem restrito à reduzida elite nacional. Os cargos diplomáticos eram reservados ao pessoal da nobreza ou da elite fina, como ocorria na Europa havia séculos. Basta lembrar que o patrono da diplomacia brasileira e, até hoje, o diplomata mais cultuado pelo Ministério das Relações Exteriores é o Barão do Rio Branco, cujo título de nobreza continuou figurando nas menções a ele, no período em que foi Chanceler, já sob o regime republicano. Fica configurada, à luz dessa contextualização, a inserção social do Conselheiro Aires.
Retornando ao texto de John Gledson, gostaria de explorar o perfil de Aires como diplomata no final do século XIX à luz de uma tese interpretativa proposta pelo crítico britânico. Gledson defende, a meu ver de forma bem fundamentada, que Memorial de Aires pode ser considerado uma alegoria que embute uma pessimista leitura histórica proposta por Machado de Assis para o Brasil, como sociedade e como projeto nacional. A tese seria justamente de que não haveria aqui uma verdadeira comunidade política ou uma identidade nacional que irmanasse todos os brasileiros em solidariedade coletiva. Recorrentemente, a maioria dos brasileiros seria traída e enganada por elementos estrangeiros, em conluio com uma elite local.

Recomendo a leitura de Memorial de Aires seguida do ensaio de Gledson, para uma compreensão detalhada da interpretação. Se algum leitor tem problema com spoiler, deve passar ao parágrafo seguinte. Em linhas gerais, Gledson interpreta que a viúva Fidélia e Tristão ter-se-iam conhecido em Lisboa, com a grave possibilidade, inclusive, de terem sido cúmplices na morte do primeiro marido dela. A hipótese é bem plausível e pode ter nas epígrafes do livro uma pista a confirmá-la. Toda a trama registrada pelo Conselheiro Aires em seu diário seria, com efeito, um teatro e uma manipulação armados pelos dois, para que pudessem casar insuspeitamente, recolher a herança dela e abandonar os amigos e o país rumo a Lisboa. A estrutura triangular de um agente estrangeiro que se alia a uma mulher ambígua para enganar um trouxa provinciano brasileiro é recorrente nos romances e em alguns contos machadianos, segundo Gledson.
O fracasso da conciliação nacional brasileira, por essa leitura de Gledson sobre hipotética interpretação histórica de Machado, dever-se-ia à falta de base social e à artificialidade dos projetos e dos êxitos políticos do Império. A abolição da escravatura, por exemplo, abordada aparentemente en passant no romance, seria mais um caso de traição da incipiente comunidade política, pois à liberdade formal e jurídica não corresponderia uma política de Estado para inclusão e para integração efetiva desse contingente populacional ao mercado de trabalho e de consumo e à cidadania.
Nas palavras de Gledson, "esta traição é, em última instância, um roubo do eu, cujas origens remontam, sem dúvida, às do próprio Brasil como colônia". A respeito do assunto, diz ainda que "o inverso de contínua traição é a contínua e patética busca de uma identidade". Desde a Independência, o Brasil problematizava sua identidade, inicialmente apropriada pela elite que, pelas formas do Romantismo, explorou um sentimento nativista, em oposição ao colonizador português, ao mesmo tempo que reforçava a integração das várias ilhas de que o Brasil era formado, na época, pela figura centralizadora de um membro de Casa Real portuguesa. O problema da identidade teve outro marco no Modernismo, já nas primeiras décadas do século XX, quando Sérgio Buarque de Holanda lançou Raízes do Brasil e abordou o problema do homem cordial.
"O grito do Ipiranga", obra de propaganda pintada pelo paraibano Pedro Américo por encomenda imperial. A narrativa sobre a Independência influencia a concepção da identidade nacional.

Tomada como pertinente a interpretação proposta por Gledson, é muito significativo que o narrador seja um diplomata. Como funcionário de Estado, o diplomata, por dever de ofício, precisa manter uma reflexão constante sobre a identidade e os interesses do País. Para ser legítima, essa concepção de País, que iluminará sua ação cotidiana, deverá ser uma boa média ou um agregado ponderado dos anseios, dos valores e dos interesses diversificados que integram o corpo nacional.  Encarregado das relações com outros países, contexto em que tem de negociar, coletar informações e representar, o diplomata também deve ser dotado de alguma malícia no trato com seus equivalentes estrangeiros, a fim de evitar que seja ludibriado em prejuízo dos interesses que protege.
Ao escolher um diplomata como narrador para Memorial de Aires, Machado de Assis potencializou o efeito da crítica histórica apontada por John Gledson. O Conselheiro Aires é tão ludibriado pela ação do casal Fidélia e Tristão, símbolos do conluio estrangeiro com a elite local, quanto as demais personagens. A condição de experiente profissional da informação e da contrainformação, da negociação e da coleta crítica de informações não exime Aires de ser vítima do mesmo engodo. Estando suas impressões registradas em um diário, suporte em que teria toda liberdade para comentar bastidores ou suspeitas, fica patente que ficou completamente alheio aos propósitos do casal.
Se, como considera Gledson, Machado alegoriza, por meio da ação das personagens de Memorial de Aires, o fracasso da conciliação nacional em virtude da inexistência de uma identidade comum a todos os membros da sociedade tupiniquim, o fato de tudo ser narrado por um diplomata brasileiro que não se dá conta do que ocorre confirma a fragilidade e a artificialidade das instituições nacionais e sua dissociação do que deveria ser sua base social. 
"Operários", da modernista Tarsila do Amaral, representa um Brasil popular e diverso. O movimento modernista brasileiro joga papel importante na formulação de uma identidade nacional mais madura e vinculada à realidade.

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