10/12/2015

Doidinho, de José Lins do Rego


Uma das postagens mais visitadas do blog trata do romance Moleque Ricardo, de José Lins do Rego. Do ano passado para cá, decidi ler ou reler, conforme o caso, as obras do ciclo da cana de açúcar, principalmente porque pretendia travar contato com a realidade cultural, social e histórica representada nelas, para subsidiar um projeto de pesquisa pessoal. Para concluir a empreitada, falta a releitura de Fogo morto, considerado a obra-prima do autor. Também incluí, de lambuja, depois de iniciado o miniplano de leituras, as obras do ciclo do cangaço (Cangaceiros e Pedra bonita) e Meus verdes anos, de memórias.
Vi, em minha visita corriqueira à loja da Amazon em busca das promoções de e-books do dia, que Doidinho, segundo romance do mencionado ciclo, estava em promoção. Resolvi avisar da oportunidade às leitoras* do blog e aproveitar, para comentar o livro, lido antes de que existisse o Palavra de Literatura.
Em Menino de engenho trava-se contato, pela primeira vez, com Carlos de Melo - ou simplesmente Carlinhos -, protagonista de boa parte do ciclo da cana de açúcar. Com o menino órfão de mãe e afastado do pai em circunstâncias traumáticas, o leitor conhece o ambiente que permeará todas as obras dessa sequência literária: a região canavieira da Várzea do Rio Paraíba, que não deve ser confundido com o Rio Paraíba do Sul, da zona cafeeira paulista. Nesse ponto da cronologia do ciclo, a área geográfica onde o Coronel José Paulino, avô de Carlinhos, é autoridade inconteste encontra-se no auge de sua pujança socioeconômica. Carlinhos, no pós-trauma, é acolhido como príncipe-herdeiro em um contexto simultaneamente de poder político, de status social, de estímulos sensoriais abundantes e de experiências afetivas intensas. O ciclo da cana de açúcar é a representação literária da gradativa derrocada desse mundo heroico e mítico até seu desaparecimento.
O que escrevi antes serviu para explicar o lugar de Doidinho no conjunto em que se insere. Nesse segundo romance do ciclo, Carlinhos é desgarrado de seu mundo de soberania quase absoluta, porque o avô o manda estudar em um colégio interno de Itabaiana, cidade paraibana próxima às terras do Coronel José Paulino. Começa, assim, a socialização da personagem, sua confrontação com o grande outro, sem as garantias nem as regalias existentes no território sobre o qual reinava o avô. Se o trauma de Menino de engenho foi a perda dos pais, mas especialmente da mãe, no caso de Doidinho, a ruptura ocorrida é a tomada de consciência do mundo exterior, do grande outro que desafia Carlinhos, indivíduo em formação, longe das asas protetoras do poder familiar.

"Iniciava assim o meu curso doloroso contra a ignorância." (p. 23)**

Como exímio memorialista, José Lins do Rego reconstitui o ambiente, as rotinas e as relações pessoais em um ambiente escolar da transição entre os séculos XIX e XX no Brasil. As primeiras letras, via de regra, não estavam a cargo do Estado. O colégio interno onde Carlinhos estuda e passa a morar, ainda criança, longe dos seus, não é senão a casa do professor. Não há separação entre as funções escolares e aquelas domésticas, exercidas pela esposa do professor e por seus empregados. Tampouco se verifica uma estratificação por idade: todos recebem instrução na mesma sala, ministrada pelo único professor, que encarna a instituição escolar. Há, por outro lado, alguma diferença social entre os alunos, Carlos de Melo ocupando o extremo abastado, enquanto um seu amigo Coruja, por exemplo, embora seja o mais aplicado e inteligente do grupo, é obrigado a abandonar os estudos por insuficiência financeira do pai.
Na conta das reminiscências e da reconstituição, entram também os dias em que todos iam banhar-se no rio Paraíba; as vergonhas sociais e verdades entreditas, como o fato de a mãe de um dos colegas ser prostituta; a religiosidade a ser incutida com dificuldade nos corações das crianças; as primeiras paixões infantis, torturadas de ciúmes e de insegurança; o retorno ao engenho do avô, o Santa Rosa, com os olhos transfigurados pelo exílio, pelo contato com o resto do mundo, que apequenava a grandeza que antes da primeira partida habitava a percepção do garoto.

"Setenta meninos de livros na mão olhando para baixo. Mas se o velho pudesse ver dentro de nós, encontraria setenta corações pulando de contentamento. A mulher bonita sacudira ali, aos pés do czar, a bomba de dinamite." (p. 45)  
"Parecia que fugíamos de um presídio, pela mão de um avô de conto de fadas. Os pássaros quando fugiam das gaiolas deviam ser assim, com aqueles nossos olhos e aqueles nossos ouvidos abertos aos rumores do mundo. O sol brilhava para a gente com uma vida que não tinha para os outros. Era como se se tratasse de um amigo de quem nos haviam separado à força. E por isto essa alegria em nos ver, em nos tostar as caras amarelecidas nas reclusões." (p. 47)
"Ainda não era Deus que estava por dentro de mim. Os meus surtos de crença morriam logo: eram pequenos relâmpagos numa escuridão que cada vez mais se fechava. Era como se numa noite escura aparecesse uma luzinha muito distante para iluminar as estradas. A que caminho poderiam levar estes pobres fogos-fátuos?" (p. 53)
Narrado em primeira pessoa por Carlinhos, o romance conjuga a reconstituição do ambiente escolar da época e do local com os conflitos psicológicos do protagonista. Com o status já mencionado de príncipe-herdeiro do Coronel Zé Paulino, Carlos carece das qualidades grandiosas que o tornariam um herói, um homem notório pelos atos  nobres e corajosos. Suas fraquezas contrastam com a força que lhe é atribuída pelos outros em virtude de ser neto de quem é, e esse conflito é internalizado pela personagem, pesa-lhe nos ombros mentais. Depois de, sob tortura da palmatória, caguetar Coruja, que lhe atendera um pedido contrário às regras da escola, Carlinhos rumina sua fraqueza:

"Naquele momento, porém, entrava-me pela alma esta advertência de olhos de abutre, que é o remorso. Conheci naquele fim de tarde a dor que Deus reserva aos que se enojam de suas faltas, a repugnância dos que são obrigados a sentir o mau cheiro de seu próprio vômito." (p. 41) 
Na formação do protagonista representada em Doidinho, há amplo espaço para críticas à educação religiosa, para a teologia da culpa ínsita ao catolicismo e aos graus distintos com que essa culpa era incorporada e distribuída de acordo com as posições sociais. O catecismo é comparado a ensinar um papagaio a falar. Diz-se que os ricos não se confessavam, porque não se julgavam passíveis dessa submissão. Carlos assume, como membro da classe abastada, um cristianismo interesseiro, que só vem à tona na medida da conveniência, porém submerge em todos os demais momentos.
Minha impressão pessoal de Doidinho foi muito positiva. O mundo representado na obra, como mencionei antes, interessava-me por razões específicas, contudo considero, secundando críticos muito mais abalizados do que eu, que José Lins do Rego é mestre, sua prosa é saborosa, tem talento para contar histórias e para evocar as imagens mais significativas. De todos que li do ciclo, está em posição intermediária de preferência. Dei 4 estrelas de 5 possíveis.


*Este blogueiro, muito politicamente correto e disso convicto, faz generalizações plurais no feminino. Assim como as mulheres não se sentem excluídas do plural dito neutro da língua portuguesa, espera-se que os homens que passem aqui se sintam abrangidos igualmente. Copia isso de Alex de Castro, autor de Outrofobia.
** A edição que li foi a 48.a, de 2012, publicada pela tradicional casa editorial dos romancistas regionalistas, a José Olympio.

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