12/02/2015

Memorial do "Memorial de Aires"

Anteontem terminei a releitura de Memorial de Aires, último romance escrito por Machado de Assis. Deu tempo de publicar algo no Instagram, mas só hoje arranjei um momento para escrever a respeito do livro.

Notei que, depois de iniciado nesta atividade blogueira e instagrameira, minhas experiências de leitura são marcadas por uma novidade: a preocupação em procurar elementos interessantes para as postagens. Além da atenção voltada para os aspectos estéticos, para a construção da trama, para referências e significados indiretos, para trechos de conteúdo memorável, passei a ter sempre presente, ao virar as páginas, a pergunta sobre o que poderia ser objeto de bons debates no Palavra de Literatura. O complexo ato da leitura fica, assim, enriquecido por essa nova disposição de espírito.

O problema é que estou começando com essa história de escrever sobre livros e, feliz ou infelizmente, tive muitas ideias para o texto que escreveria sobre o Memorial. Eu poderia implementar todas e desdobrá-las em várias postagens, mas, conhecendo-me bem, temo deixar ideias soltas pelo caminho, sem que lhes dê corpo textual. Confesso aos leitores, metalinguisticamente, os impasses de um novel blogueiro com sua mente cheia de projetos confrontada com as restrições de tempo que a vida lá fora impõe aos que cumprem expediente por um salário. 

Pensei, por exemplo, em dedicar uns parágrafos só para os aspectos de construção do narrador-personagem em sua condição de diplomata aposentado. Reuniria e comentaria tanto as passagens com referências abertas e diretas à vida profissional do Conselheiro Aires, o narrador, no exterior e na relação com os órgãos de governo, como exploraria aquelas características mais sutis e indiretas atinentes ao perfil esperado de um diplomata. Um texto assim discutiria, em primeiro lugar, a construção da personagem por Machado de Assis: minúcias que conferem verossimilhança e consistência ao protagonista. Por exemplo:

"Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta cousa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!"

Outra vertente que me renderia uma postagem exclusiva, ainda como fruto da leitura do Memorial de Aires, seria a discussão sobre a arte da conversa na forma como ela se manifesta no livro: falas, respostas, hesitações, cálculos e sutilezas que são narrados pelo Conselheiro Aires, nas páginas de seu diário, relativas à condução de conversas nos ambientes sociais que frequenta. A informação que obtemos da trama, contada no dia-a-dia registrado no diário, vem da habilidade com a qual o narrador conduz os bate-papos entabulados com um e com outro de suas relações. 

Achei interessantíssimo como ele, em diversas ocasiões, confessa haver tido a intenção de dizer algo, mas ter recuado por julgar inconveniente ou invasivo. Em outras, suscita assuntos, como quem não quer nada, para descobrir as novidades sobre a viúva Fidélia ou sobre o jovem Tristão. Reconhece a maldade de D. Cesária, mas admite sua queda pelas maledicências da senhora. Há momentos, ainda, em que consegue desviar de temas dolorosos e entreter seus interlocutores com amenidades. Essa habilidade liga-se, a propósito, com a profissão do Conselheiro Aires, pois se espera que um diplomata colete informações de bastidores relevantes para seu país, e uma das formas mais corriqueiras de consegui-las é fazer amizades certas, conquistar a confiança delas e ser capaz de seduzir pela conversa. Eis um trecho que ilustra o que digo:

"D. Carmo entendeu acaso que o assunto podia ser enfadonho a estranhos, e trocou as mãos à conversa. Não totalmente, é verdade; falou da casa do Desembargador Campos e do que iria por lá. Eu (habilmente, confesso) querendo saber o estado do coração de Osório, perguntei se ele não estaria lá também, ele, que também é do foro."

Mais pano para manga seria explorar as marcas do gênero "diário" empregadas por Machado de Assis, para engendrar o Memorial de Aires. Assim como há a construção da verossimilhança do narrador-personagem como diplomata aposentado, também se encontram, a serviço do convencimento literário, elementos desse gênero de escrita pessoal, destinado a consignar confidências e registros mais ou menos aleatórios do cotidiano de quem o escreva. Aires, por exemplo, conversa com o papel e discute o que deve ou não incluir em sua superfície. Ele comenta os dias omissos, admite o encurtamento de uma história em razão do cansaço, anota as datas e os horários de inclusão das linhas no diário, questiona-se sobre a finalidade dos textos. Eu já tentei disciplinar-me a escrever diário e vivenciei muito do que Aires revela passar nessa sua atividade. Para além disso, caberia, na postagem que tratasse desse aspecto, discutir como Machado se valeu desse formato, para contar uma história.

"Sete dias sem uma nota, um fato, uma reflexão; posso dizer oito dias, porque também hoje não tenho que apontar aqui. Escrevi isto só para não perder longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada."

Até este ponto, acho que os aspectos levantados foram primordialmente formais: a construção da personagem narradora, a arte da conversa como meio de revelação do eixo central da trama e as marcas do gênero "diário". A última postagem que faria sobre minha releitura (quer dizer, a penúltima, porque a última poderia ser sobre a experiência das releituras) do Memorial de Aires seria de fundo, de conteúdo: a relação entre a juventude e a velhice. A maioria das personagens é idosa: o próprio Aires, o casal Aguiar, a irmã do diplomata, Rita, e o tio da viúva Fidélia, Desembargador Campos. No vaivém dos dias, eles giram em torno do destino de Fidélia e de Tristão, ambos amados como filhos pelo mencionado casal Aguiar. Mais não digo, para não estruir algum elemento surpresa da narrativa. Dou só um aperitivo:


"... concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente, do extinto e do caduco."

Creio que já vão bastantes linhas para atualizar o blog. Ao mesmo tempo que considero haver transmitido algum gosto da obra, deixo estabelecido um plano de postagens, que só o tempo dirá se virão à luz. Os leitores podem ajudar-me, com pressões e com pitacos, incentivando a realização do projeto. Não preciso dizer a ninguém que o romance é recomendadíssimo, porque estão aí décadas e décadas de críticos sagazes, de acadêmicos rigorosos e de bons leitores a elogiar, com cada milímetro de mérito, a maestria de Machado de Assis na seara da prosa.

2 comentários:

  1. Tenho uma amiga que é mestre em filosofia e hoje cursa história, que está estudando a relação entre a história do Brasil e a obra do Machado, mais especificamente o período do Ventre Livre. Quando vi sua postagem das obras completas dele, lembre dela.

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  2. Não é minha obra de Machado se Assis preferida. Mas lendo sua postagem me veio a vontade de relê-la. Farei isso. Valeu.

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