24/02/2015

Diário de leitura: "O Anjo Pornográfico" - parte 2

Como eu mencionei na postagem anterior deste diário de leitura, depois do primeiro terço de O Anjo Pornográfico o narrador deixa, aos poucos, a vida de Nelson no período de formação e no contexto familiar e volta-se para aquele em que ele é efetivamente o protagonista da história. Os primeiros eventos dignos de nota são o casamento de Nelson Rodrigues com Elza e sua estreia como dramaturgo, primeiramente com a montagem de A Mulher sem pecado e, mais emocionante e épica, a de Vestido de noiva.

O casamento e o início da carreira dramatúrgica são entrelaçadas na narrativa de Ruy Castro. Nelson casa com Elza e contra a sogra, que o considerava um partido ruim para a filha. Ganhava pouco e morava longe, como se diria atualmente. Andava desleixado e não inspirava um futuro promissor em termos de conforto material talvez nem para ele mesmo. Além de tudo isso, tinha um histórico de tuberculose persistente, em uma época em que o tratamento da doença era, a bem dizer, um jogo de sorte. Consumado o matrimônio, o futuro célebre escritor resolveu escrever peças como forma de aumentar a renda:

Estava passando pela porta do Teatro Rival, na Cinelândia, onde uma fila se atropelava para ver Jaime Costa em "A família Lero-lero", de R. Magalhães Jr. Nelson ouviu alguém comentar: 
"Essa chanchada está rendendo os tubos!" 
Por que não escrever teatro? Não lhe parecia mais difícil do que escrever um romance. Pelo menos, era mais rápido. Com os dedos salivando, Nelson resolveu tentar." 
Atentem para "os dedos salivando", mais uma amostra do talento de prosador de Ruy Castro. Atentem também para o momento marcante na gênese do escritor Nelson Rodrigues. Quem, como eu, interessa-se pelo mundo da literatura - mas especialmente quem deseja tornar-se um escritor - deve achar particular interesse em como se cria um escritor consagrado, em como ele resolve e conclui que se dedicará ao métier. Cada um poderá ter suas motivações, e nós tendemos a idealizá-las. No caso de Nelson, uniu-se a prática da escrita por meio do jornalismo com a necessidade de complementar a renda. Ele vislumbrou a aplicação à produção artística, para fins pecuniários, de um talento aprimorado com o exercício diário nos jornais.

Escrever todo mundo escreve, naquela época como hoje. Eu estou escrevendo, por exemplo. Outra coisa é ser lido. Outra ainda mais difícil é ganhar dinheiro com isso. Minha já arrojada ambição restringe-se ao segundo passo da mencionada escala, mas não era o caso de Nelson Rodrigues. Ele distribuiu suas peças para leitura de medalhões da literatura e da crítica nacionais, como Manuel Bandeira, pediu que escrevessem opinião, de preferência favorável, a respeito delas, bem como usou suas amizades nos meios jornalístico e político, para viabilizar a montagem e alcançar o público. Mutatis mutandis, como os blogueiros e instagrameiros da atualidade trocam curtidas, indicações e divulgações de forma geral.

Um comentário:

  1. Complementar a renda escrevendo... Que coisa difícil! Penso na escrita como complemento de diversas coisas, mas da renda nunca me passou pela cabeça. Rs.

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