28/02/2015

Mais "Memorial de Aires", John Gledson e a crítica literária

                                   "... a traição do leitor é o desenvolvimento lógico dos modelos de traição dentro dos enredos dos romances e dos contos (de Machado de Assis)."

"... permitindo ao tolo contar sua própria história, Machado faz com que ele pareça sábio."

(John Gledson)


O britânico John Gledson está entre os mais prolíficos e respeitados leitores de Machado de Assis atualmente e foi um grande responsável pela internacionalização do prestígio do brasileiro. Em 1986, publicou Machado de Assis: ficção e história, com uma inovadora interpretação de cunho histórico dos principais romances machadianos. Na apresentação à obra, Nicolau Sevcenko, Professor da USP falecido no ano passado, classifica os livros entre os que marcam épocas, os que mudam um campo de estudos e os que "reconfiguram a percepção de um repertório já conhecido". Diz, em seguida, que o de Gledson logra encaixar-se nas três categorias. Depois de terminar a releitura do Memorial de Aires, aproveitei que o enredo e a forma estavam frescos em minha mente e fui ao capítulo de Gledson sobre ele.

O bom crítico literário é um leitor de referência. Espera-se que ele esteja apercebido das ferramentas de análise e das informações contextuais necessárias a expandir as possibilidades de leitura de um texto literário, tanto quanto possível, às suas fronteiras de significação mais remotas. Amiúde se dá conta de nuanças, de camadas, de matizes pouco ou nada perceptíveis mesmo para leitores experimentados. Antigamente os escritores eram, ao mesmo tempo, críticos e resenhavam nos jornais, como Manuel Bandeira, Machado de Assis e Mário de Andrade. Mais para cá, a função profissionalizou-se e concentrou-se mais no mundo acadêmico. Mais para cá ainda, talvez a blogosfera e as redes sociais protagonizem um novo movimento relevante nessa divisão de trabalho. A esperança de expandir minha leitura do Memorial de Aires levou-me ao texto de Gledson.
O crítico chama atenção para questões relacionadas à posição do narrador-personagem ou, como se diz também, em primeira pessoa. Nos romances desse tipo, especialmente naqueles escritos por Machado de Assis, o filtro da subjetividade do autor impõe grandes cuidados ao leitor, na hora de comprar a versão dos fatos e as impressões da pessoa que narra. Ainda em meus tempos de escola, que não são muito longínquos, um professor de Literatura do Ensino Médio promovia o julgamento de Capitu: um lado acusava a mulher de adultério, o outro defendia a honradez dela. Em primeiro lugar, imagine-se uma discussão sobre adultério em um colégio católico com alunos adolescentes. Em segundo, questione-se o sentido de um julgamento em que toda a instrução processual ocorre mediada pela subjetividade do marido supostamente traído, único participante dos episódios com voz sobre o caso.
Não seria capaz de reproduzir aqui inteiramente os argumentos de Gledson para fundamentar sua proposta de leitura do Memorial de Aires, exceto se estivesse determinado a enfadar quem alcance este ponto do texto. Em vez disso, apontarei para alguns deles, no intuito de estimular a memória de quem já leu o romance machadiano em questão, de instigar quem não leu a fazê-lo e, ao cabo, encorajar uns e outros a consultarem Gledson.
Vejamos inicialmente a questão da abolição da escravatura. Escrito em 1908, deve-se procurar o motivo por que Machado de Assis situou o diário do Conselheiro Aires entre os meses que antecederam o 13 de maio de 1888 e aqueles pouco antes da Proclamação da República. Não encontramos uma reflexão direta sobre o cativeiro e sobre a forma como foram libertos os negros escravos no Brasil. A maneira machadiana é de soslaio, como o olhar de Capitu. Dois episódios emblemáticos referem-se à escravidão: um antes de ela abolida, outro depois. No primeiro caso, o pai de Fidélia está indignado com a possibilidade iminente da abolição e resolve antecipar-se ao Estado, para marcar a posição de que somente ele dispõe de sua propriedade. No segundo caso, a filha decide passar para os escravos as terras herdadas de seu pai, falecido simbolicamente logo depois da Lei Áurea, mas isso enseja a pergunta anotada por Aires nas páginas de seu diário: "será que os ex-escravos poderão dirigir a fazenda; será que a doação realmente os beneficiará?" Gledson responde à pergunta deixada em aberto no romance:


"Claro que os escravos seriam incapazes de operar a fazenda: sem nenhum capital, nenhum hábito de autonomia, uma herança da subserviência forçada e da ignorância, como se poderia esperar algo diferente?"

Os prováveis reais motivos de Fidélia, alegados por Gledson para entregar as terras aos libertos, eu deixarei de fora daqui, porque explicitá-los pode estragar algumas surpresas da trama. A conclusão do crítico, porém, acerca da presença do tema da escravidão no Memorial de Aires, posso muito bem compartilhar: o romance trata da abolição como aparência de generosidade e de virtude. Os negros possuídos pela família de Fidélia foram libertos por ação privada e receberam um suposto benefício não do Estado, mas por obra de outro agente privado, e o que pareceu bondade não passou de ditames econômicos ou de outros fatores alheios à questão moral da escravização de seres humanos.
Para não encompridar demasiadamente a postagem, ficarei somente com mais uma sugestão de Gledson para aproximar-se do Memorial de Aires. Prescreve, como já mencionado, uma "saudável desconfiança em relação ao narrador", a partir da qual devemos imaginar um enredo diferente, mas igualmente plausível, para a história que a personagem conta em forma de diário. O crítico recomenda neutralizar a interpretação do próprio Aires para as motivações das personagens, ao agirem, e procurar nas entrelinhas outras possíveis, provavelmente menos nobres. Uma pista para quem vai ler ou reler o romance em apreço é considerar as epígrafes do livro, que transcrevo a seguir, como chaves essenciais à interpretação:


"Em Lixboa, sobre lo mar, 
Marcas novas mandey lavrar..." 
(Cantiga de Joham Zorro) 

"Para veer meu amigo 
Que talhou preyto comigo, 
Alá vou, madre. 
Para veer meu amado 
Que mig'a preyto talhado, 
Alá vou, madre." 
(Cantiga d'el-rei Dom Denis)

Quase tão prazeroso quanto ler o Memorial foi ler o estudo de Gledson. Certa feita, ouvi João Batista de Brito, paraibano que também é crítico de cinema e de literatura, dizer em palestra que uma função da crítica é prolongar o prazer proporcionado por uma obra no leitor. Eu sinto mesmo isso, quando a obra e o crítico são dignos dos nomes. Foi o caso, agora, de Gledson. E eu espero que a ganhadora ou o ganhador do exemplar que será sorteado hoje pelo Palavra de Literatura leia logo o romance e se anime a discutir comigo as próprias impressões, por e-mail ou nos espaços de comentários. Aí poderemos entrar em detalhes que a necessidade de evitar spoilers previne de vir à tona.



Um comentário:

  1. Não veria problema algum caso você tivesse que encompridar a postagem. Sua escrita é ótima e muito prazerosa, rapaz.
    Grande abraço!

    ResponderExcluir

Deixe uma palavrinha