09/02/2015

Leitura a lápis

Hoje o dia no trabalho foi pesado, cheio de responsabilidades. Depois do expediente, joguei pouco mais de duas horas de tênis, que relaxa e ajuda a saúde. Cheguei bem disposto para atualizar o blog.

No clube de leitura formado pelo pessoal de meu trabalho, a que me referi na postagem sobre Dois irmãos, surgiu uma discussão sobre grifar e anotar os livros. Já há algum tempo, esse assunto me surgiu como bom mote para uma postagem. Como o Palavra de Literatura é, lato sensu, um espaço da bibliofilia, cabem umas pinceladas sobre isso.


Eu, em meus primeiros anos de leitor, tive uma fase de veneração pelo livro como objeto. Nada de riscar, de anotar, de usar a orelha como marcador de página e, heresia das heresias, de abrir o coitado do folhoso como um caderno de arame, de forma que uma capa encostasse na outra. Meu pai, quando via uma traça saracotear para fora de um amontoado de papéis, xingava demais o coitado do bicho, o que sugere uma das fontes de meu zelo pelos livros. Creio que nunca cheguei a ser doentio nesse cuidado, mas sentia raiva de quem amassasse, dobrasse, riscasse, ou maculasse os de minha propriedade. Para preservar a amizade, era melhor nem emprestar.


Uma professora minha de português, posteriormente também patroa no curso dela e uma das principais incentivadoras, tanto pelo exemplo quanto pelo discurso, de minha paixão pelos livros, começou a quebrar o tratamento sacrossanto que eu dedicava a eles. Lembro que, certa vez, depois que eu lhe devolvi um exemplar emprestado, ela lamentou que eu não o tivesse grifado nem anotado, porque tinha curiosidade de saber o que chamara minha atenção naquela prosa. Era uma obra de Juan José Saer, escritor argentino, intitulada O enteado (recomendo!).




Outro motivo para ter mudado minha reticência quanto aos grifos e às notas foi a leitura de Como se faz uma tese, de Umberto Eco. Meu exemplar ficou no Nordeste (eu moro em Brasília), mas, felizmente para mim e para vocês, encontrei com facilidade o trecho que me interessava mostrar-lhes. Depois de dar várias instruções sobre como e por que grifar, leia-se o que diz Umberto Eco sobre a intocabilidade dos livros, o que vai em português europeu, que foi o que achei:


"Os sublinhados personalizam o livro. Assinalam as pistas do nosso interesse. Permitem-nos voltar ao mesmo livro muito tempo depois, detectando imediatamente aquilo que nos havia interessado."


"Se o livro é vosso e não tem valor de antiguidade, não se deve hesitar em anotá-lo. Não deveis dar crédito àqueles que dizem que os livros são intocáveis. Os livros respeitam-se usando-os e não deixando-os quietos."




Depois desse conselho de um dos mais importantes pensadores vivos atualmente, relaxei. Não foi só questão de autoridade: ele convenceu-me. Parece-me que mais vale garantir o prazer e a utilidade de, ao passar em revista um livro lido, reencontrar-se com os momentos marcantes da leitura, do que deixá-lo intocado. Fiquei tão persuadido, que passei a grifar com caneta. Sublinhava, comentava, discordava, exclamava, tudo naquele azul Bic indelével de esferográfica comum. O resultado foi que minha inexperiência traduzia-se em alguma falta de critério, e, aos poucos, notei que, ao folhear títulos já lidos, discordava da relevância de certos destaques. Foi o caso, por exemplo, daquela minha edição da Odisseia publicada pela Cultrix, que viu quem leu a postagem sobre minha coleção de traduções dessa obra.


O arrependimento do grifo não é algo tão grave. Sempre se pode encarar um realce que a gente descredencia depois como um registro histórico, como rastro de nosso passado mental. O confronto com ele pode ser motivo para reflexões proveitosas. De todo modo, a experiência conduziu-me ao estado atual em que espalho lápis por onde posso e sempre tenho um à mão, para a leitura da vez. Leio a lápis tanto quanto a olhos. Quando me dano a ler desarmado de um coto que seja de grafite e deparo com um trecho bonito, interessante, palpitante, é comum interromper o fluxo, pelo medo de, passando as páginas, esquecer-me dele depois. 


(Meus grifos em Memorial de Aires, de Machado de Assis: leitura em caneta, releitura em grafite)


Há quem alimente um ideal de isenção e independência e não queira nem influenciar nem ser influenciado pelos grifos alheios, ao ler um livro. Quem pensa assim usa esse argumento, para falar contra os riscos nas páginas. Não sabem que, quando levantamos a capa, nossa mente vem já grifada e anotada por inúmeras influências do mundo, e essa suposta independência de nossa leitura não passa mesmo de um ideal. A leitura é sempre sua, mesmo com condicionalidades e determinações externas.

Termino esta postagem com a citação de um de meus dez filmes mais queridos, que desperta enorme carga emocional em mim, cada vez que o revejo. Se você que me lê adora livros e se considera um bibliófilo tem obrigação de assistir a Nunca te vi, sempre te amei (84 Charing Cross Road). Certamente farei uma postagem exclusiva para essa película, mas vale dizer algo a respeito do enredo, para contextualizar a citação. Imagine-se uma escritora de humor fino, personalidade forte, inteligência aguda, na margem ocidental do Atlântico, em Nova York, interpretada por Anne Bancroft; no outro lado do mesmo oceano, em Londres, um livreiro sereno, contido, culto e diligente interpretado por Anthony Hopkins. 




Agora pensem em um filme quase todo construído sobre as cartas, as ordens de compra e as remessas de livros entre ambos. A amizade entre a escritora e os funcionários da livraria londrina enseja o envio por eles de um exemplar para ela, à guisa de presente. Como bons profissionais do ramo, mandam uma mensagem escrita à parte, em um cartão, não no livro. A seguir, leiam o que diz Helene Hanff, a presenteada, sobre tudo isso, que traduz perfeitamente o que sinto sobre grifos e anotações em livros (primeiro minha tradução livre, depois o original em inglês):




"Muito mau vocês terem sido tão exageradamente cuidadosos, que me escreveram em um cartão, em vez de fazê-lo na folha de rosto. É o livreiro dentro vocês todos. Recearam desvalorizar o livro. Teriam aumentado seu valor para esta dona e possivelmente para os futuros donos. Eu adoro inscrições em folhas de rosto e anotações nas margens. Gosto da sensação de camaradagem ao passar páginas que outra pessoa passou e ao ler passagens para as quais alguém, muito tempo atrás, chamou minha atenção."


"Too bad you were so over-courteous and put the inscription on a card instead of on the flyleaf. It's the bookseller in you all. You were afraid you'd decrease its value. You'd have increased it for this owner and possibly for future owners. I love inscriptions on flyleaves and notes in margins. I like the comradely sense of turning pages someone else turned and reading passages someone long gone has called my attention to."

Um comentário:

  1. Raimundo,

    muito agradecida e lisonjeada pela visita e comentário gentil. Muito simpático de sua parte.
    E sobre esta postagem: você está aumentando minha lista de desejos de livros e filmes. Muito bom! Obrigada
    Com relação às anotações em livros, achei muito interessantes as colocações.
    A questão que gostaria de abordar é: e nas bibliotecas públicas, escolares, itinerantes? Vale escrever nos livros? Convém cada usuário anotar no livro e o devolver com as anotações?
    Mandarei um e-mail no endereço que consta no Instagram para comentar o assunto. Pode ser?
    Abraços,
    Marcela Yoneda

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