19/02/2015

Leitura a lápis - parte 2

Em 10 de fevereiro, na postagem Leitura a lápis, comentei o hábito de fazer grifos e anotações nas margens dos livros. Depois disso, ocorreu-me a ideia de realizar uma promoção no Palavra de Literatura, cujas regras de participação os leitores podem ler aqui. Trata-se do sorteio de um exemplar do romance Memorial de Aires, de Machado de Assis, com os sublinhados e as notas que eu fiz em minha edição do livro transcritos. Espero que a leitura das duas postagens mencionadas seja suficiente para contextualizar tudo.

(Homero escrevendo uma parte desta postagem. Juro que a bagunça aí foi obra dele)

Passemos agora ao motivo da postagem de hoje. Aconteceu que a leitora Marcela Yoneda, depois de ler a já mencionada Leitura a lápis, fez um rápido comentário no campo reservado para tal, no blog, mas, ao mesmo tempo, mandou-me um texto maior, que pode ser considerado uma crônica, com um relato e algumas reflexões sobre a ocasião em que pegou emprestado da Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulistana, um exemplar que lhe veio anotado e grifado, como o que estou oferecendo na promoção.
Em seu comentário rápido no blog, Marcela questionou-me sobre se eu - que defendi grifos e notas sobre o papel dos livros, em detrimento daquela posição de veneração desse objeto, a qual faz muita gente querer, a qualquer custo, preservá-lo incólume a todo desgaste - retomando, se eu sou a favor da liberação de realces e de inscrições em livros de bibliotecas. O sujeito vai a uma das raras que existem no país e, chegando lá, ao retirar um exemplar do acervo, descobre, como Marcela, que as linhas estão comentadas, sublinhadas, marcadas etc. 
Se a moda pega, quem sabe não passam a fazer isso mesmo nas livrarias? Eu, que defendi o direito, quase como um dever, de deixar nos livros lidos os rastros da leitura realizada, compraria um exemplar assim? Sei que, nos sebos, de forma geral, obras grifadas valem menos. Pode procurar, por exemplo, na Estante Virtual, que esse aspecto é frequentemente mencionado nas descrições do estado dos exemplares anunciados. 
Minha resposta a Marcela recorre ao brasileiríssimo "depende" intransitivo. Depende. Imagina se o livro pertenceu a Aldir Blanc, e as páginas registram as leituras que ele fez? Certa feita, comprei um exemplar usado no sebo Berinjela, no Centro do Rio de Janeiro, de presente para minha mãe. E não é que o danado do dito cujo pertenceu a Aldir Blanc e trazia a assinatura do compositor na folha de rosto? Nesse caso, o valor do objeto pode ser elevado pela fama em si do antigo dono ou pelo interesse, inclusive, coletivo, pelo modo como aquela personalidade leu determinada obra. Já imaginou se eu pego a edição de Casa-grande & senzala lida e anotada por José Lins do Rego, tendo em conta a importância que a obra de Freyre teve para a de Zé Lins?

(São comuns edições com notas de especialistas)

No caso de Marcela, não podemos ter certeza, mas aparentemente o livro que ela emprestou da Biblioteca Mário de Andrade não foi anotado por Sérgio Buarque de Holanda ou por Joaquim Nabuco. Sim o foi por uma pessoa comum como nós. Digo "comum" em certo sentido, porque, pelo que me disse o relato de Marcela, quem se atreveu a intervir, a caneta ou a lápis, nas folhas pertencentes ao Pode Público, foi uma leitora acima da média, com bagagem considerável, que chamou a atenção de Marcela para passagens relevantes e ainda proporcionou que ela conhecesse um excelente autor, cuja obra dialogava com aquela à mão e cujo nome foi posto ali ante seus olhos.
Seria difícil que a experiência contada por Marcela se repetisse com a maioria dos grifos de livros em biblioteca, caso esses fossem liberados pela administração do lugar. No e-mail que lhe mandei, à guisa de resposta, aventei a possibilidade de a instituição ter um cadastro de leitores que, preenchidos certos requisitos, formariam uma equipe de voluntários autorizada a fazer grifos, ao ler as obras. Por exemplo, clientes assíduos da biblioteca que comprovassem ter formação em determinada área seriam autorizados e até estimulados a grifar e anotar livros da mesma área. É uma ideia, mas não necessariamente se deveria vincular a permissão para sublinhar e escrever ao currículo profissional do usuário.
Feitas essas considerações, que já ultrapassaram demais o que eu planejava como apresentação ao texto de Marcela, compartilho-o com vocês e estimulo todos a visitarem o blog dela (Blog da Mar), que me parece uma ótima cronista. Aí vai:

Raimundo, 

Então vamos lá: confesso que ainda tenho escrúpulos! 
Dificilmente escrevo em livros. 

Já tive muito mais. Atualmente, se o livro for meu, faço grifos, chaves, estrelinhas ou qualquer outra marcação para chamar minha posterior atenção em algum trecho que se destacou aos meus olhos ou em palavras que não sei o significado. 

Mas frases não dá. 
Lembro dos meus pais me ensinando: em livro não se escreve, não se faz pinturas e nem rabiscos. É obra de alguém e não se escreve na obra de alguém. Se for emprestado, devolva do mesmo jeitinho que pegou e agradeça. 

Hoje penso que esse argumento é um respeito exagerado, afinal de contas anotar alguma coisa na obra de alguém não vai alterar a obra, mas pensando em propriedade alheia, cabe. 
O fato é que levei ao pé da letra a “assepsia” das páginas por muito tempo. 

Os questionamentos, pesquisas e dúvidas e ignorâncias anotava - e ainda anoto - em um caderno separado, fazendo as devidas referências. 

Se o livro não me pertencer, nem pensar! Sem grifos, sem asterisco, sem marcação alguma. 
Não tenho nada contra se fizerem em algum meu. Já aconteceu, mas não gosto de escrever no dos outros. 

Para presentear faço questão de escrever dedicatória na primeira página. 
Como geralmente presenteio com livros que já li, acho simpático deixar registrado que desejo que a pessoa presenteada compartilhe a mesma experiência que me agradou. Que passe a fazer parte do universo dela. 

Lembro que fiquei estarrecida a primeira vez que peguei um livro na Biblioteca Mário de Andrade (SP) que estava forrado de anotações. 
Procurei a funcionária para comentar a respeito e a reação dela foi pior do que a minha. 
Ficou triste e perguntou se eu levaria daquele jeito, se preferia deixar e ofereceu-se para ver se havia outro exemplar disponível, “limpinho”. 

Retirei o livro todo “rabiscado”. 
Prometi a mim mesma que não olharia as anotações para não xeretar os pensamentos de ninguém. 
Achava que seria um desrespeito – uma certa intromissão -saber o que uma pessoa desconhecida escreveu num livro. Bobagem, eu sei. Mas foi o que pensei à época. 

Mais tarde, em casa, não cumpri a promessa e posso dizer que não li o livro: estudei-o, meticulosamente. 

Todas as anotações haviam sido feitas por uma estudante. 

Pelos escritos, concluí que a professora pedira a leitura e moça (os dizeres e a letra pareciam femininos) foi anotando: “falar para a profa que pode ser interpretado assim ou assado, por causa disso e disto”; “vai cair na prova”; e fazia colocações pertinentes, paralelos com outras obras e analogias. 
Nos trechos que ela mais gostou desenhou coraçãozinhos. (mais uma pista de que a pessoa era uma mulher – rapazes não costumam desenhar corações nos cadernos; ou desenham? Sei lá! Tanto faz!). 
E a pessoa fez tudo a lápis - grafite. 

Foi por causa das anotações da suposta garota que conheci o escritor “Mia Couto”. 
Ela escreveu o nome dele na lateral e até achei que eu não estava lendo corretamente. 
Achei que talvez ela tivesse escrito “Meu Conto” mas pesquisei “miu”, “min”, “mio” e finalmente “mia”. 

A Biblioteca Mário de Andrade é toda informatizada hoje em dia e é fácil achar as obras através dos filtros disponíveis. 
Sempre acho uma maravilha as buscas por lá - sou da época das fichinhas ensebadas pelas muitas dedilhadas dos usuários. Mouses ensebados são mais ágeis! rsrs 

Só não me pergunte qual foi o livro “enfeitado” de comentários que retirei. 
Não consigo lembrar. Já pensei e pensei e não lembro. Isso foi há muitos anos, logo que informatizaram o sistema de acesso ao público. 

Quando fui devolver o bendito livro procurei a mesma funcionária da retirada e comentei que as anotações eram ótimas, sugerindo que a Biblioteca não as apagasse porque poderiam ser úteis a outros leitores e estudantes. 

Não sei o que ela fez. 
Por ela ou por norma da Biblioteca, talvez tenha apagado tudo, mas na hora que mostrei as anotações ela achou muito interessante e ficou pensativa. 

Quem sabe leu o livro justamente por causa das anotações? 
E, quem sabe, não buscou o outro autor também? 
Conhecimento passado involuntariamente no caso da estudante para mim. Proposital da minha parte para a funcionária. 

A questão é que se todos anotarem nos livros que são de acesso público vai virar uma grande confusão pelo excesso de informação e pelo formato – alguns escreverão com canetas, outros com lápis para distinguir do leitor anterior. 
Não sei. 

Lembro que, na época, fiquei muito feliz pelo “estudo” do livro, pelo conhecimento de novo autor que um desconhecido me proporcionou e pela constatação de que havia gente levando os estudos a sério. 

É isso. 
Lembrei do fato ao ler sua última postagem e quis te contar a experiência. 
Obrigada. 

Marcela Yoneda

7 comentários:

  1. Muito legal o texto da Marcela. Me identifiquei bastante com as reflexões que ela fez e fico feliz que essa experiencia tenha lhe trazido o Mia Couto.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Dado meu apreço e carinho que tenho pelo "Palavra" é uma grande honra para mim a reprodução e a citação do blog, Raimundo.
    Que bom que ajudou a ilustrar o assunto das anotações.
    Voltarei com mais tempo no final de semana. Hoje só passando rapidinho para agradecer - dia enrolado.
    Obrigada, Mayara pelo comentário.
    Literaterapia: foi assim que conheci o autor que você tanto gosta.

    Abraços,
    ("comentário" e "curtir" estão travando - por isso a "apagação!")
    Abraços

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    1. Oi, Marcela. Que história interessante! A vida tem dessas coisas, né. Ainda bem! Poxa, que livro será que era?
      Fiquei curiosa, quando descobriu quem era Mia Couto, qual primeiro livro dele que leu?
      Vi que vc tbm gosta bastante do Valter Hugo Mãe. E Agualusa, vc gosta tbm?

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    2. O primeiro do Mia foi um livro de contos. Não lembro o nome.
      A próxima vez que eu for à Biblioteca vou ver se têm histórico das retiradas.
      Não li Agualusa ainda.

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    3. Então já deixo aqui minha indicação de "Teoria geral do esquecimento" do Agualusa!

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