06/03/2015

Diário de Leitura: "O Anjo Pornográfico" - parte final.

Lendo as últimas páginas da biografia de Nelson Rodrigues, com café, brownie e livros recém-comprados.

Estou imbuído da difícil missão de produzir o último texto sobre O Anjo Pornográfico. Como um princípio fundamental deste blog é escrever, custe o que custar, estou começando a dar forma à postagem final do diário de leitura da biografia de Nelson Rodrigues, sem antever um plano geral. Passei uma vista no que escrevi antes sobre o livro e tentarei guiar-me pelo que prometi: analisá-lo à luz das razões e das expectativas que me levaram a incluí-lo na lista de 2015.
Para começo de conversa, considerei-o cinco estrelas, que é o máximo em minha escala de avaliação. Para os leitores terem noção do que significam essas estrelas, e para que fiquem um pouco menos subjetivas, explico-as. Uma estrela é livro abandonado, que equivale a comida estragada: não consigo deglutir. Duas estrelas é livro ruim, com forma capenga, conteúdo que não vale a pena ou as duas coisas, mas legível, terminável. A diferença entre um duas estrelas e outro uma estrela podem ser cinquenta páginas a mais ou a menos. O livro três estrelas é bom, muito se aproveita dele, mas a vida poderia ter passado sem sua leitura. Como a avaliação é minha, esse critério adota principalmente minha vida como baliza. O livro quatro estrelas é muito bom, paga folgadamente o tempo dedicado a ele, se eu vivesse de novo, tornaria a lê-lo, mas fica por aí. Cinco estrelas, enfim, é aquela obra marcante, magistral, informativa, formalmente impecável ou inovadora, cuja releitura tenderá a ocorrer nesta mesma vida, merecerá muitas visitas, em seu todo ou em partes.
O que me ocorre comentar, primeiramente, é a escolha do biografado por Ruy Castro. Por mais talento que um autor tenha em organizar determinada narrativa, de modo a deixá-la interessante, ele não dispõe, em uma biografia, das liberdades inerentes à ficção, área em que sua imaginação pode engendrar histórias que gerem tensão, dramaticidade, beleza etc. A escolha de Nelson Rodrigues não poderia ser mais feliz para quem não pode inventar para seduzir o leitor. Duvido que haja alguém mais humano do que ele, com tantas contradições, ao mesmo tempo talentoso e errático, apaixonado e generoso, polemista, irresponsável, amoroso. Além de seus atributos individuais, Nelson esteve cercado de familiares e de amigos cujas vidas envolveram ação a granel, no jornalismo e nas letras, no teatro, na política, nos esportes. Por tudo isso, Ruy Castro marcou um golaço, de partida, ao escolher Nelson, e realizou seu projeto incrivelmente.
O Anjo Pornográfico é formado por 32 capítulos ordenados cronologicamente. A cada um, corresponde um ano ou período e um título temático. Dentro de cada divisão, o autor faz avançar a história da vida de Nelson e, paralelamente, as de outras personagens de seu círculo. O título é escolhido de acordo com o fato mais marcante daquela unidade temporal. O capítulo "8. 1930: O grande pastel", por exemplo, recebe seu nome do empastelamento sofrido pelo jornal de Mário Rodrigues, pai de Nelson, durante a Revolução de 1930, mas traz também o julgamento de Sylvia Seraphim, a mulher que seria protagonista da maior tragédia que abateu a família Rodrigues. Os nomes dos capítulos registram os anos de 1912 a 1980, mas a narrativa começa antes ainda, quando trata do avô de Nelson Rodrigues e de suas origens pernambucanas.
Em um mesmo capítulo, o texto pode transitar da escritura e montagem de uma peça de Nelson para um problema familiar, de uma crise financeira para um nova contratação do escritor por um jornal e um êxito de público de sua coluna diária, de tudo isso para um trecho da vida de um dos irmãos do biografado. A título de exemplo: o capítulo "28. 1968: flor de obsessão" começa com Maria Lúcia, que alegava ser filha de Nelson, pedindo-lhe pensão para seus irmãos e para si; passa a mais uma sequência sobre a vida de Mário Filho, logo após sua morte, quando se decidiu batizar o estádio do Maracanã com seu nome; segue com o relato de mais uma campanha de Nelson para conseguir a liberação de uma peça sua pela censura; continua com a contratação de Nelson por Roberto Marinho para escrever a coluna "Confissões", em "O Globo", espaço por meio do qual o dramaturgo exercita sua verve de polemista. Com essa configuração, Ruy Castro vai ligando vários aspectos da vida de Nelson, e o leitor tem sempre uma variação de cenário, de personagens e de temas, o que torna a leitura sempre arejada.
Sobre a carreira de escritor do biografado, eu poderia comentar diversos aspectos assaz interessantes. Filho de um político, empresário e, mais que tudo, jornalista, Nelson cresceu em ambiente em que a palavra escrita gozava de um valor especial. Cedo os filhos de Mário Rodrigues eram aproveitados na equipe de seu jornal e, não à toa, praticamente todos escreveram, mesmo Stella, formada em Medicina. Nelson teve coluna própria aos 16 anos no periódico do pai. Também grande leitor, embora Ruy Castro não se estenda muito nesse tópico, Nelson Rodrigues vinculou-se muito cedo às letras. Como comentei em postagem anterior, a iniciativa de escrever a primeira peça foi motivada por razões financeiras. Aos poucos, a produção escrita dele passou a gozar de uma liberdade tal, que tanto tratava de memórias e de opiniões como de ficção, sem perder a atenção do público. Tinha uma facilidade imensa para encher muitas laudas, sem perder qualidade.
Uma constante na linha biográfica traçada em O Anjo Pornográfico são os recorrentes problemas enfrentados pelo Nelson dramaturgo com a censura, seja em períodos considerados democráticos, seja nas fases autoritárias da história brasileira. Ainda sob Getúlio, que sofrera a oposição da família Rodrigues e comandou uma ditadura ferrenha entre 1937 e 1945, Nelson gozou de relativa abertura para com a montagem de sua obra, o que Ruy Castro atribui à simpatia do sobrinho do Presidente e à solidariedade de amigos comuns. Essa solidariedade seria mobilizada praticamente a cada peça nova a ser montada. Muitas vezes, autorizava-se a publicação, porém barrava-se a representação do texto, o que não deixa de ser curioso. Como observa bem Padre Vieira no Sermão da Sexagésima, com palavras mais elaboradas, claro: uma coisa é ler, imaginar, ouvir falar; outra bem diferente, muito mais poderosa, é ver, é absorver pelos olhos. É impressionante a energia que Nelson Rodrigues tinha para lutar por suas peças. Chegava a pedir pareceres a clérigos e a intelectuais de reputação consagrada, a fim de desbloquear seus textos teatrais para montagem e exibição ao público.
Não há registro de que o biografado tenha enfrentado, em alguma fase da vida, problemas de criatividade. Pelo contrário, o livro faz parecer que as palavras minavam continuamente das pontas dos dedos dele em contato com as teclas da máquina de escrever. A matéria prima de Nelson Rodrigues variou. Para uma série de crônicas de ficção inspiradas em notícias mormente das páginas policiais, o sucesso e a popularidade fizeram que, além das matérias jornalísticas que emprestavam assunto a "A vida como ela é...", passasse a receber histórias que lhe chegavam por cartas ou no boca-a-boca, para servir-lhe de mote. Ruy Castro mostra também como ele recorreu a casos da vizinhança de sua infância, bem como às figuras fortes e às tragédias épicas que marcavam sua família. Vejamos um excerto ilustrativo:


"Muitas peripécias desta primeira parte soam como ecos do passado profundo de Nelson. A lenta agonia de Sílvio no hospital lembra a de seu irmão Roberto. O pai morre por causa do filho, assim como Mário Rodrigues morrera por causa de Roberto. Só que doutor ARnaldo não morre de "desgosto", mas se mata com um tiro na cabeça. E, após a morte do pai de Engraçadinha, a família perde a sua espinha dorsal, como acontecera com a família de Nelson depois da morte de Mário Rodrigues. Com as modificações exigidas pela ficção, era a mesma história em linhas gerais. E era cruel, mas irônico: Nelson, que vira os Rodrigues protagonizando as situações de folhetim que ele tanto gostava de ler em criança, traduzia agora a sua própria experiência de vida nesse gênero de literatura."

A relação de Nelson Rodrigues com seu público foi oscilatória. Por um lado, inspirava um fascínio imenso, e a pecha de maldito e de tarado, como era de esperar-se, rendia uma atenção fidelíssima a suas confissões e memórias no jornal. Por outro lado, penou bastante com a montagem de suas peças, que eram achincalhadas, vaiadas e proibidas como força destruidora da família brasileira. Havia quem o acusasse de autor barato, mas gente graúda não resistia a ler o que escrevia. Recebia elogios veementes de monstros literários nacionais, ocasiões em que, se lhe eram dirigidos pessoal e oralmente, pedia logo que o fizessem por escrito e com a devida firma.
Por último, para não cansar os gatos pingados que leram até esta altura, ressalto a questão do posicionamento político de Nelson Rodrigues em relação à ditadura civil-militar instalada no Brasil em 1964. Nelson tinha prestígio com os militares e chegou a ajudar bastante gente a encontrar parentes presos e desaparecidos, independentemente de cor ideológica. Depunha favoravelmente a pessoas detidas e investigadas, muitas vezes inventando intimidade ou mentindo sobre a antiguidade de seu vínculo com a vítima. O biografado apoiava o regime, por ser contrário ao comunismo e acreditar que aquele endurecimento era um remédio adequado contra o sistema marxista, mas, segundo Ruy Castro, confiava nos generais, quando lhe diziam que não se torturava no país. Foi grande o baque, quando seu filho Nelson, envolvido com a resistência à ditadura e preso, disse-lhe que, sim, havia sido torturado. É um capítulo bem interessante da narrativa, que, como se pode verificar, tem de tudo.
A leitura de O Anjo Pornográfico foi uma das mais ricas dos últimos doze meses e cumpriu a contento os principais objetivos que estabeleci para ela. A escrita é de primeira, a disposição dos assuntos e as personagens são interessantíssimas e tiveram vidas singulares, a pesquisa foi muito bem feita e abarcou informações públicas, tanto as disponíveis em documentos como aquelas exclusivas de depoimentos pessoais, sobre hábitos e manias restritos à intimidade. Como disse antes, Nelson figurou em vários gêneros da literatura, no jornalismo, na política, no teatro, na televisão e nos esportes, o que confere a sua biografia um espectro insuperável de assuntos, de ambientes e de temas. Deixo o livro com saudades e desejo de retorno.

Um comentário:

  1. Raimundo,

    Foi um prazer acompanhar sua leitura do Anjo Pornográfico. Uma gostosura
    de ler.
    Sou bastante reticente quando se trata de biografias.
    Sempre penso que a estória estará inchada de personagens na tentativa do
    autor em contextualizar o biografado. Ou que o inchaço se dará pela tentativa em deixar o livro interessante. Ou o inverso - que faltarão detalhes importantes e estarei perdendo tempo em conhecer só uma parte da história.
    Parece que Ruy foi realmente feliz nesse livro: personagem por si
    só interessantíssima e detalhes inseridos na medida certa.
    Fiquei até com vontade de ler o livro. Seu filtro para passar
    conteúdo sem se exceder ou faltar, compartilhando o conhecimento, explicando seus critérios de análise e percepção foi excelente. Parabéns!

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