17/04/2015

Meu remorso depois de "o remorso de baltazar serapião" - parte 2

(Continuação)

Minhas dívidas só se acumulam. No entanto, estou aqui, ainda não desertei. Vamos à segunda parte da longa apreciação de o remorso de baltazar serapião.

***

Eu dizia que as relações de gênero são peça-chave nesse romance tramado por Valter Hugo Mãe. A regra é a mulher oprimida e violentamente esfolada, com requintes de crueldade chocante. A irmã de baltazar, brunilde, é levada para servir, em todos os sentidos imagináveis, dom afonso, o senhor das terras onde vive a família sarga. A mãe de baltazar anda torta e aleijada, porque o marido torceu-lhe propositadamente os ossos, de modo que ela não pudesse traí-lo, seja pela dificuldade de escapar, seja pela deformação que espantaria a cobiça masculina. Seu destino é aterrorizante.
A estonteantemente bela ermesinda casa com baltazar, porém a formosura excessiva dela, ao mesmo tempo que o cativa, desperta a cobiça de dom afonso. O marido apaixonado, depois de muito ansiar pelo casamento, depara com o dilema: não pode aceitar a desonra do chifre e a humilhação do amor maculado pela presença de outro homem, todavia falta-lhe a ousadia para contrapor-se a seu senhor, ou para levar ermesinda para longe e iniciar nova vida. O remorso de baltazar, pode-se dizer que é parido por sua grande covardia.
Os abusos e os arbítrios são cometidos ao longo de uma cadeia de opressores e de oprimidos que se tornam opressores para quem está no degrau logo abaixo. A malfadada ermesinda, que gradativamente se entroncha pela violência de baltazar, repetindo a sina da sogra, é provavelmente o elo mais fraco da corrente. A degradação de ermesinda, que quase não tem voz, que mal se defende, que parece tão indefesa nesse meio, a ponto de não conseguir sequer negar que seja obrigada a transar com o senhor das terras, eu dizia que a degradação dela é sufocante demais, uma história de terror. É estropiada, sem que baltazar a socorra nem a proteja, como deveria ocorrer, mas ao contrário.

a minha ermesinda já tinha pé torto virado para dentro, braço que não baixava com mão apontada para céu, outro braço flácido e sem mão a partir de pulso, mais olhos esquerdo nenhum, só direito. era como estava, mas nada verdade que vantagem sua se apagasse, estava de curvas mantida, pele macia, o cabelo longo e claro, lábios cheios.

Talvez se possa considerar que há uma heroína na história. Ela é um foco de resistência feminina. É insolente, não se enquadra. O narrador refere-se a ela, quase sempre, como a mulher queimada. Considerada bruxa, vivia isolada, porque não quis outro homem, depois das mortes dos seus. A comunidade acusa-a de tê-los matado. Escondidos dos poderes estabelecidos - o padre, no âmbito religioso, e dom afonso, no âmbito secular -, os moradores do local ateiam fogo em Gertrudes. Ela sobrevive e passa a vagar pelas penumbras, até que baltazar, compadecido, aceita levá-la em uma viagem, para que possa retomar a vida alhures, como esmoler. No meio do caminho, desentendem-se, e aí está a origem de uma maldição que vai acompanhar o protagonista até o fim da narrativa.

e todos escondiam de el-rei o caso da mulher queimada. nenhuma condenação haveria de nos ser conhecida. como se nenhuma mulher cozinhasse ali coisas más e houvesse sido queimada contra decisão das pessoas superiores.

nada normal para mim que recuso ser de homem, nada quero que homem algum me toque. e porque te casaste. sempre fui casada por pais ou homens que me mandassem, mulher solteira é má de vida e fica sem trabalho nem amizades.

Eu estou estendendo esta postagem, sei que precisa terminar, contudo teria muito mais a dizer sobre o livro. Não posso deixar de comentar a linguagem singularíssima entretecida por Valter Hugo Mãe. Além das imagens poéticas que já me haviam aparecido em a desumanização, surpreendeu-me uma prosa com sintaxe muito própria, meio barroca, meio oral, que lembra muito o estilo de Guimarães Rosa, mas, diferentemente desse, não vem marcada pelo vocabulário regional pujante nem pelos truncamentos sintáticos da fala do jagunço Riobaldo.

manhã cedo o sol nos acorda, estava nossa cara acesa onde incidia como instrumento picando pedra.

Concluo este texto com uma incômoda sensação de incompletude. Faltou muito. Falta, inclusive, reler essa obra e prestar mais atenção aos meandros que uma primeira leitura não permite notar. E isso é característica de obra destinada ao futuro, fadada a virar clássico e a se perpetuar defronte dos olhos de muitas gerações. 

Um comentário:

  1. Ualll! Fadado a virar clássico? Preciso ler para ontem!
    Não nos abandone. Sentimos saudades!

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